Na foto acima, o saudoso professor Armindo, que lecionava Matemática e Desenho, tendo sido um exímio professor
Bem, nos meus tempos de grupo escolar e do antigo “Ginásio Monlevade”, de madeira, havia uma professora, chamada Dona Vera (ou “Verona”, como era chamada à boca pequena), uma alemãozona braba pra caramba, o terror da meninada. Certa vez, ela arremessou um apagador de quadro na testa do Jaime, colega de admissão do Ginásio Monlevade. Para acabar com a pintação, em sala de aula… Ela também esgrimia a régua com maestria.
No primário, tomar “reguada” na batata das pernas era mole pros alunos. Desconfio que na antiga “Escola Normal”, que formava professoras, devia ter uma matéria optativa de “Castigologia”; optativa porque nem todas as professorinhas eram adeptas das beliscadas e reguadas. Já levei, de algumas mestras, reguada, beliscão, puxão de orelha e safanão, por justa causa, admito. Jamais relatei em casa os castigos sofridos na sala, senão a punição vinha em dobro. O bom cabrito não berra, não tinha essa de pais “tomarem satisfações” na escola por causa de punições sofridas pelos pimpolhos que, sabiam eles, terem sido justíssimas. Ademais, pé de galinha nunca matou pinto.
No Ginásio, já maiorzinhos, não havia castigo físico, os pintos haviam se tornado frangotes. Fui agraciado, por mérito, com “notas vermelhas” de “Comportamento”, nas cadernetas onde eram lançadas as notas. Lembra-se? De dez a oito, tinta azul, de sete pra baixo, vermelha vibrante. Está no meu currículo: não com certo orgulho, recebí alguns “setes” e também um glorioso e solitário “cinco”, no decorrer do meu ciclo ginasiano. Só unzinho…
Já crescido, tentaram me defenestrar de sala de aula , e suspender, uma única vez. Estava no Científico e o autor da injustiça foi um professor de Português – este sim, intolerante – que não aceitou minhas ponderações contrárias às que ele discorria, sobre aspectos de literatura portuguesa . Eu já era um ledor dedicado, sabia que minha argumentação era calçada por sólidos fundamentos. Irritado com a minha “desfaçatez”, proferiu o famigerado “prá fora!”, ao qual não obedeci. Ele se retirou. Fui suspenso, pelo Padrigino, por “desrespeito”, episódio que muito contribuiu para a minha formação. Anos depois, sempre me lembrava do fato, quando em combate de idéias e palavras com meus alunos, no ambiente acadêmico. Mesmo tendo sido injusto, meu ex-professor de Português me ensinou tolerância e respeito às idéias dos outros, sem nenhuma intenção. Pela sua ‘formação’ em Literatura Portuguesa, por certo desconhecia um cidadão que atendia pelo nome de Voltaire, ao qual sempre se atribuiu uma frase antológica, parecida com “Não concordo com uma só palavra do que dizes mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo”. Voltaire, como bem o sabeis, não era cidadão lusitano, daí os antolhos literários do mestre.
Voltando ao velho ginásio de madeira da Rua Carijós (saudades da lojinha da D. Farid, mãe da Zanza, onde a gente comprava chiclete de bola ‘Ping Pong”- com as figurinhas do Bolão) o severo professor Armindo era imbatível na espinafrada, quando a gente pisava na bola. E como a gente pisava! Soltar bombinha do recreio, queimar peido alemão, espalhar pó-demico no pátio, fazer graça na hora da fila – tinha que haver silêncio – e arremedar professores eram os pecaditos comuns. Nada que se compare à leveza das infrações de hoje… Fessor Armindo era uma espécie de doublé: professor de Matemática e professor disciplinário.
Creio até que o “Padrigino” jamais determinou que ele assumisse esta segunda função; deve ter partido dele, tal era o amor e a dedicação que nutria pelos seus alunos e pelo seu Ginásio. O Ginásio Monlevade era parte dele, sentíamos isso. Era tão bom professor de Matemática quanto era bom disciplinador. Sem ser versado em psicologia ou endocrinologia, entendia muito bem dos efeitos devastadores dos hormônios no comportamento dos moleques de doze aos dezoito anos. Passava cada reprimenda que perdiamos até o rumo de casa! O discurso dele era uma autêntica metralhadora verbal, disparava mil e quinhentas palavras POR MINUTO, eficientíssima em anular a energia de qualquer garnizé bagunceiro. E “botar prá fora da fila” era outra de suas punições habituais. Se, na fila para entrar nas salas bancávamos os engraçadinhos, era castigo certo: depois que todos subiam para as salas, o alijado da fila levava uma descompostura homérica. Às vezes, de lambuja, ficava de castigo uma meia hora retido no ginásio, no final das aulas, para uma “reflexão”.
Outra especialidade do “fessor” Armindo era castigar o infrator com as famigeradas “cópias”. O manjado refrão “Não devo fazer bagunça em sala de aula” era a mais comum das frases. Dependendo da gravidade do delito, tinhamos que copiar a frase cem, duzentas, quinhentas e até mil vezes. Reincidência fazia o número de cópias aumentar em progressão geométrica, acho que para fazer justiça à Matemática, da qual ele era o expoente máximo na comunidade. Essa história das cópias tem facetas hilárias: a gente, quando não tinha nada pra fazer, fazia estoque das tais cópias, só prá tê-las prontas, quando fôssemos punidos. Às vezes, entre colegas, pedia-se “emprestado”, para ficar livre mais rapidamente do castigo, sob promessa de pagamento posterior, com juros, do tipo “me empresta cem que depois eu te devolvo cento e cinquenta”, uma espécie de comércio ou câmbio paralelo de cópias. Mas “seu” Armindo era macaco velho, conhecedor das cumbucas éstudantís; de vez em quando, conferia a caligrafia do réu em todas as folhas preenchidas e as impugnava quando notava letra estranha. Outra das suas artimanhas, quando desconfiava de armação: ele mudava a frase e a gente se ferrava.
Todos sobreviveram
Com ou sem puxões de orelhas, safanões, cópias e descomposturas, todos sobrevivemos e, como diziam os antigos, “demos pra alguma coisa na vida”, sem traumas ou rancores dos nossos professores. Que, se nos puniam com estes doces e brandos castigos, era com o intuito de complementar a formação que nos era dada em casa.
É, naquele tempo havia o que se chamava “educação doméstica”.
Hoje, se nós reverenciamos e conservamos especiais carinho e respeito para com nossos velhos professores, Lucílo, Casimiro, Dimas, Armindo, Terezinha, Padrenriques, Padrigino, Tiaguinho, Dona Guilhermina e tantos outros…é porque eles ajudaram nossos pais a nos forjar, impregnando-nos com o senso de disciplina, o respeito aos mais velhos, o respeito às instituições, o respeito às autoridades e o comprometimento com o aprendizado.
Tenho dito!
* Álvaro Falcão de Almeida é monlevadense, filho do saudoso dentista Dr. Oscar Falcão de Almeida, que atendia em seu Consultório no Bairro Areia Preta. É formado em Medicina Veterinária e professor universitário aposentado, em Belo Horizonte.
Com orgulho, um nota vermelha, fazedor de cópias, escutador de reprimendas… que, parece, deu pra alguma coisa na vida!