Gigante, Esplendoroso! – *Afonso Torres

Na foto acima, Omar Antunes, saudoso “Gigante”, quando era entrevistado pelo jornal “Morro do Geo”, na edição de nº 09, em junho/2001

O significativo conjunto arquitetônico de estilo eclético que compõe a Praça Rui Barbosa encantou a mocinha de Abaeté. As cariátides do torreão do relógio chamaram sua atenção para o alto e aquele homem nu, empunhando uma bandeira sobre o monumento de granito não lhe parecia a melhor forma de se dar boas vindas às pessoas que desembarcavam do trem, vindo do interior, ali na Central do Brasil. Devota de Nossa Senhora do Patrocínio, padroeira de sua cidade natal, aquela mocinha de dezessete anos era, obviamente, cheia de pudores mineiros… O cansaço de uma viagem de quase 200 km, com uma baldeação em Dores do Indaiá, não fora suficiente para abater o deslumbramento causado pela Capital do Estado. Belo Horizonte com seus altos prédios, avenidas largas e movimentadas, cheias de pedestres e veículos, era simplesmente fascinante para aqueles olhinhos curiosos, habituados à região diamantina que deixara pra trás. Tudo aquilo lhe parecia gigantesco, quase sufocante…

  Ao continuar a viagem pelos trilhos da ferrovia, mais novidades: Sabará, Santa Bárbara, Florália e Rio Piracicaba apresentavam forte contraste com a capital, exibindo seus antigos casarios coloniais e, com suas centenárias igrejas barrocas de torres à apontar para os céus, obrigavam-na a persignar-se continuamente, como lhe ensinara sua mãe, católica praticante que sempre fora… Agora, surpresa, surpresa mesmo, se deu foi no final da viagem, seu destino desde o princípio: João Monlevade. Acampamentos das empreiteiras beiravam os trilhos: o improviso indisfarçável não conseguia encobrir a esperança ali reinante. Depois de uma curva, surgiu a Estação Ferroviária. O apito acionado pelo maquinista, aliado ao estilhaçar dos freios, despertou-lhe fantasias. Na companhia de sua irmã Irene e seu cunhado Vicente Oliveira, funcionário da C.S.B.M., Geny desceu do vagão da Maria-Fumaça aliviada. O futuro era alvissareiro, prometia!… Filha temporã, acostumada a todos os paparicos, tinha a absoluta certeza que sua irmã não iria coloca-la em uma “roubada”!…

  Na plataforma, um rapazinho que aparelhava idade com ela, solícito, se ofereceu para ajudar com a bagagem. Era o “Zinho” que, de tanta brilhantina a esticar os cabelos crespos, ganhou o apelido de “Glostora”. Ao longe, as grandiosas cúpulas metálicas da usina reluziam ao sol da manhã e as chaminés lançando fumaça aos céus decretavam que se chegara à uma terra de trabalho. –“Nossa – pensou ela, sorrindo muito e esfregando as mãos adolescentes – tudo é tão excitante!…”

  Lá em baixo, uma ponte larga de madeira cruzava o sinuoso Rio Piracicaba, unindo as duas margens.. Uma mata fechada, de odores desconhecidos, cobria a montanha de verde à direita; à esquerda, casas idênticas e enfileiradas exibiam seus telhados de telhas ainda novas e uniformes: – “Parece uma cena de presépio, não é mesmo?!… Comentou Geny com sua irmã. O “Zinho”, sempre muito despachado, foi logo concordando com a moça bonita… Após descerem por uma trilha íngreme, subiram a Rua Siderúrgica, logo à frente. A maioria das casas já estavam prontas e habitadas por técnicos oriundos da Usina de Sabará, informou o cunhado. Após as casas, à esquerda, passaram pelo Hotel Novo, mais tarde, Hotel Monlevade. Algo em seu coração descompassado se agitou ainda mais. Algo assim como um bom pressentimento. Desses que sempre acometem aos mais sensibilizados. Sorriu feliz!… Ainda nem se recompusera do profundo suspiro que se fizera indispensável, quando se deparou com uma enorme construção branca de janelas azuis – como convém aos imponentes casarões mineiros. No alto, acima de sua cabeça, mais parecia um castelo!… – “É quase!..” – brincou o cunhado. “Aí se hospedam os engenheiros e convidados da Companhia. Apesar de não acontecer nenhuma jogatina, chamamos de Hotel Cassino.” Falou bem humorado e divertido com as expressões de sua jovem esposa e da deslumbrada cunhada. Não sem antes, um aparte do “Zinho”: -“Ainda vou trabalhar aí!… Ah, se não vou!…

  À porta do Hotel Siderúrgica, um jovem casal, o Sr. Moacir e Dª Dora, aguardava os novos hóspedes. Foram gentilíssimos ao recebê-los e, ao acomoda-los, foram explicando o aglomerado de gente que se encontrava do outro lado rio, nas fraudas da Mata Atlântica, ocupando um descampado ainda em processo de terraplanagem: uma celebração comemorava o lançamento da Pedra Fundamental da futura Matriz de São José Operário, padroeiro da Vila Operária. As águas das inúmeras nascentes escorriam pelos morros, alimentando o volumoso rio, à umidificar o ar. –“ ‘Tá vendo só, Irene, chegamos em dia de festa!… Novos ares!… O futuro promete!…” Em seus arroubos juvenis, Geny queria logo se trocar e participar daquela festa!…

  Das janelas do hotel, curiosa que só, passou a observar o movimento do outro lado do rio: na clareira aberta, entre algumas árvores ainda de pé, só se via homens de terno e gravata e mulheres, muito alinhadas, em seus vestidos de seda; Congregados Marianos portando suas características opas vermelhas; beatas, de cabeças cobertas por véus escuros, que se vestiam de azul escuro, ostentavam suas fitas vermelhas do Apostolado da Oração a cobrir o peito; as virginais Filhas de Maria, com suas fitas azuis celeste, estavam de branco e as crianças da Cruzada Evangélica portavam fitas amarelas sobre as vestes alvejadas a anil. O arcebispo de Mariana, D. Helvécio de Oliveira, paramentado em roxos, acrescentava mais cor à multidão alvoraçada. Geny precisou se persignar, pedindo perdão à Deus por associar aquela massa de gente colorida às suas memórias carnavalescas… – “Onde já se viu pensar isto de uma cerimônia religiosa!!!… Mas quem é que tem controle de todos os seus pensamentos?!…” Concluiu, sorrindo, cada vez mais convicta de estar feliz com tudo que lhe cercava… Aquele dia 29 de novembro de 1942, apenas dezenove dias após seu aniversário de dezessete anos, ficaria para sempre em sua memória!…

  Muito prendada, Geny costurava feito gente grande e logo foi convidada a auxiliar Dª Mariazinha do Sr. Vavá, uma vizinha da Rua Tocantins, muito atarefada, que vestia a mulherada do lugar, quase não dando conta de tantas encomendas da crescente população. Foi assim que acabou conhecendo Dª Flordaliza – que, em1940, fora enviada à Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, pelo Dr. Ensch, para, assim se tornar a competente e muito requisitada parteira local – e seus filhos. Todos muito bonitos. Pode-se dizer que com pinta de futuros galãs de cinema. Era o que se dizia…

   No dia dois de outubro de 1948, aquele pressentimento ao passar pelo Hotel Novo, no dia da chegada, acabou se confirmando: aos vinte e três anos Geny iria ao seu primeiro baile no Ideal Clube que, por falta de uma sede, funcionava, provisoriamente, no refeitório do hotel. Isto desde sua fundação, no dia dezesseis de janeiro de 1946. Seria o Baile da Primavera, evento que se tornou efetivo no calendário do clube. Com seu vestido de organza branca, bem rodado – como decretava a moda de então – armado pelas anáguas bem engomadas, sapatinhos de salto “Luis XV”, Geny atravessou a rua em frente ao hotel. Seu coração ecoava o toc-toc dos saltos do sapato nas pedras que calçavam a rua, feito um extenso pé-de-moleque. Os lábios coloridos pelo batom vermelho da Coty tremiam de nervoso. O ar, quase irrespirável. As mãos enluvadas transpiravam o perfume “Cashemere Bouquet” do sabonete usado no longo e relaxante banho que tomara à poucas horas. Mal sabia ela que seria, aquela, mais uma data, de todo, inesquecível…

  Subiu os dois degraus encerados da entrada, atravessou o arco arquitetônico e sentiu que as luzes da varanda iluminavam a sua presença. Parou. Respirou fundo. Sorriu consigo e adentrou o recinto elitizado. Na sala de entrada e no salão mais luzes transformavam a noite em dia, dando boas vindas aos convidados. O Conjunto Musical do Juventino Caldeira animava o baile reproduzindo os grandes sucessos ouvidos pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro: “Perfídia”, “Quereme Mucho”, “Saudade Mata a Gente”, “É Com Esse Que Eu Vou”, entre outras repercutiam pelo ambiente. “A Lenda de Abaeté” era a preferida de Geny. Bastava fechar os olhos para que ela chegasse a ouvir as vozes de Francisco Alves, Emilinha, Dircinha Batista, Marlene, Lúcio Alves ou Orlando Silva cantando só pra ela!… Era como se estivesse no auditório da Programa do Cézar de Alencar, lá na Capital do País!…

  Estava em um desses devaneios quando ouviu, para sua total surpresa, seu nome sendo anunciado como eleita “Princesa da Primavera de 1948”!!!…. Passado o susto, alegria e constrangimento se misturavam compondo um rodopiante coquetel de emoções. Ainda pasma, viu o presidente do clube, o Sr. Yvon Paiva, colocar a faixa bordada em seu peito arfante. Sentiu, envergonhada e orgulhosa, todos os olhares dirigidos à sua pessoa. Um, em especial, não se desgrudava: aos dezoito anos, altivo, atlético, ainda mais encorpado pelo terno bem estruturado de casimira inglesa marsala – seus olhos de costureira perita logo identificaram o corte bem feito a deixar o caimento da roupa impecável – foi se aproximando de seu “Trono de Princesa” e, com um sorriso algo tímido, por trás do bigodinho à Clark Gable, a convidou pra dançar. Era um dos filhos de Dª Flordaliza, sua irmã não iria ralhar. Aceitou. Mais que elegante, era distinto o rapaz… O impregnante perfume Madeira-do-Oriente que ele exalava nunca mais sairia de sua memória olfativa…

  E não é que ele a acompanhou ao fim do baile até a porta de casa na Rua Tietê?!… Ficou tão nervosa que a ponta do salto do sapato de verniz, vez ou outra, se prendia nos vãos da ponte de madeira que ligava os dois lados da cidade. A imponente Matriz, canonicamente instalada à apenas uma semana, parecia abençoa-los lá do alto. Ela com os braços cruzados sobre o peito, ele mãos entrelaçadas nas costas. Ambos cabisbaixos, ambos sorridentes, só se olhavam de soslaio. Muito tímidos, se sentiam mesmo era intimidados pela certeza daquela travessia definitiva: já podiam se considerar namorados…

  Tudo que até então soubera de olhar e ouvir dizer foi se confirmando no desenrolar do relacionamento: o Omar Antunes Rodrigues era mesmo um rapaz de fino trato!… Nascera em Antônio Dias e se formara em BH. Em 1942, quando Geny chegara à Monlevade, ele já chamava a atenção jogando como zagueiro no Atletic, posição que exercera no Tramodol, equipe de futebol do Bairro Carlos Prates, na capital mineira, durante o período em que cursou o DI – curso patrocinado pelo governo. Experiência esta que lhe garantiu um condicionamento físico tal que lhe possibilitou a prática de vários esportes: natação, corrida, atletismo e, até mesmo, boxe…

  Com 1,80m, aos doze anos, foi inevitável o apelido que lhe caia bem, feito uma luva: Gigante. Omar era superlativo em tudo. Da docilidade no trato ao total empenho em tudo a que se propunha; do sorriso largo à solidariedade explícita. Era assim pela própria natureza. Exatamente como se canta no Hino Nacional: Gigante!… Afável e “Pau-pra-toda-obra”, começou a trabalhar cedo na empreiteira do Raimundo Campolina como pintor das casas em construção. Depois, aos quinze anos, fichou-se na Belgo-Mineira no Transporte de Tijolos.

A foto de casamento de “Gigante” e Geny, tendo como damas de honra Lelena Brum e Ângela Fidelis

  Em vinte e dois de abril de 1950, quando Geny Noronha Antunes casou-se com Omar, na Matriz que viu erguer-se desde a fundação, acrescentando o Rodrigues ao seu nome de solteira, viu que tudo fora como o pressentido: inapagável para todos os tempos!…

*Afonso Torres é historiador, escritor e colaborador do jornal “Morro do Geo”!

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