Na fotografia acima, já desgastada pelo tempo, o Sr. Alonso Batista Leite
Quem, em sã consciência, poderia imaginar uma cena daquelas acontecendo nos pastos abertos que circundavam a Rua Principal de Carneirinhos? Nem no mais audacioso sonho alguém afirmaria que a molecada local, um dia, estaria fazendo aquilo tão naturalmente, mas, vejam só, lá estavam elas: uns montados em seus cavalos – na verdade, pedaços de pau, galhos de árvore recolhidos no quintal – a gritar cheios de entusiasmo: “Aiô, Silver!!!…”, enquanto acreditavam estar empinando suas bravas montarias de Cavaleiros Solitários, Zorros imaginários que se acreditavam reais; outro, indignado, insistia em afirmar que, ele sim, era o Flecha Negra. O índio Navajo, pois sua pele era “mais vermelha” e mais dois ou três brigando sério para se assumir Roy Rogers, pois estavam cansados de só ser o Rocky Lane em todas as brincadeiras…
Isto era coisa para a meninada de Monlevade acostumada a frequentar o cinema do Macêdo. Os caipirinhas de Carneirinhos nem sonhavam com tal coisa, quando muito, se tivessem muita sorte, poderiam ter ouvido falar de um tal de “Gerônimo, Herói do Sertão” e seu parceiro, o “Moleque Saci”, personagens de uma rádio novela da Rádio Nacional do Rio de Janeiro que fazia muito sucesso entre a gurizada que acompanhava suas aventuras, vibrava com suas façanhas, aplaudindo suas ações corajosas a favor dos fracos, dos humildes e dos oprimidos que sofriam nas mãos do malfeitor “Caveira” e seu comparsa “Chumbinho”. Isso de torcer a língua para falar nome de gringo só estava acontecendo porque o sempre visionário Alonso Batista Leite resolveu se associar ao recém chegado de Goiabal, o Padre João Batista Gomes Neto, nomeado vigário cooperador do Cônego José Higino para cuidar dos interesses da Capela de Carneirinhos. Juntos montaram uma sala de projeção para filmes de 16mm, próximo ao já diversificado comércio do Alonso que ficava onde hoje se encontra o prédio do Zezinho do Foto Central, em frente a Praça Sete. Não era uma sala assim tão escura, pois foram colocados tijolos intercalados no alto, junto ao telhado, para permitir um mínimo de ventilação. Coisas do Alonso. Ele era assim…
Saída da C.S.B.M
Tinha tido uma experiência como funcionário da C.S.B.M. onde, de pedreiro chegou a encarregado de montagem, porém, insatisfeito com o salário, abandonou o serviço sem nem mesmo dar baixa na carteira de trabalho. Casado com Carmelita Odorica Monlevade, bisneta de nosso pioneiro, tinha que alimentar os filhos, então abriu uma vendinha num cômodo que lhe pertencia à beira da Rua Principal, onde, no futuro abriria o cinema. E foi levando. Melhor que o serviço de capina que fizera anteriormente, pensava. Empenhado, a vendinha evoluiu para um mercadinho que ganhou um restaurante e até mesmo uma bomba de gasolina da Texaco ele instalou em sua calçada, afinal de contas viajantes passavam pela Rua Principal rumo a Capital Belo Horizonte, passando por Santa Bárbara, Caeté, Sabará, nada menos que a antiga Estrada Real. Um depósito de madeira e uma carpintaria foram acrescentados ao diversificado comércio. Em todos eles valia o “fio de bigode” do freguês. Nem perguntava quando seria saldado o débito; separava a encomenda e mandava entregar no endereço que sabia de cor e salteado.
Filho de José Ricardo Leite e Dona Anelina Augusta de Oliveira, herdou do pai este gosto pelo novo, pelo desafio. Foi ele, o Alonso, o primeiro a ter luz elétrica no povoado. Na região onde hoje se encontra a rua que leva o nome do seu pai, Ricardo Leite, havia uma lagoa, então ele montou uma represa para, com ela, criar uma usina que movimentasse um dínamo e gerasse a energia necessária ao seu intento. Com o tempo as águas foram escasseando – naqueles tempos já havia disso – a luz foi ficando fraquinha, iluminando que nem vela. O córrego não estava muito longe, mas as terras pertenciam ao seu concunhado Geraldo de Paula, e o jeito foi pedir autorização para ali instalar um moinho que, durante o dia fabricava o fubá e a noite, transferida a correia para o dínamo, gerava luz. Assim voltou a ter luz elétrica de qualidade e capacidade de dividir com os vizinhos a benfeitoria.
De réis em réis, de tostão em tostão, foi montando seu patrimônio, junto com o trabalho dos filhos – todos nascidos pelas mãos da conceituadíssima parteira Dona Jovi, esposa de Sô Duca, que morava ao lado da pensão de Dona Sinhá, esposa de Sô Nico – que ele, “sem dó, nem piedade”, acordava às seis da manhã, todos os dias, para enfrentar a labuta ao seu lado. Meninos ainda, largavam seus sonhos por entre seus travesseiros feitos de pluma de taboa, flores de marcela e carinho de mãe…
Tinha muito orgulho do pai e queria ter o orgulho dos filhos. Seu pai, o Ricardo Leite era mais conhecido pelo apelido de “Sabereta” – aquele que sabe de tudo. Era o único do povoado que conhecia a capital. Ia lá fazer suas compras, trazer encomendas, se informar das novidades. Era muito procurado pelos amigos para apresentar solução para seus problemas. Muito solícito, atendia a todos e, na medida do possível – “pau-pra-toda-obra” que era – não os decepcionava.
Quando enviuvou, fez um acordo com os filhos: eles construiriam uma casa para ele em Nova Era, onde pretendia realizar novas núpcias, e, em troca, receberiam as terras que lhes caberiam por herança. Foi nestas terras que o Alonso Leite transformou em realidade seu mercado, sua represa e seu cinema.
Moral da história: se filho de peixe, peixinho é, porque não, “filho de sabereta, sabaretinha também é”? (N’é mesm”, Nonô de Alonso)?…
*Afonso Torres é historiador e escritor, e colaborou com nosso jornal durante alguns anos!