As Crônicas do Dr. Stanley!

A Japona Renner – (Do Livro “Confusão no Elevador”)

Quando me mudei para Monlevade, a primeira coisa que me assustou foi o frio que fazia aqui. As noites geladas, madrugadas com ruas cobertas por neblina, o vento frio que chegava aos ossos. Era um sacrifício sair da cama às duas, três horas da manhã para ir ao hospital atender algum chamado. Vestia blusas por cima de blusas, enrolava um cachecol no pescoço, calçava meias de lã.

Um dia, na loja do Ernane Guerra Lage, o Coruja, descobri uma preciosidade: uma japona de lã, marca Renner, daquelas que os gaúchos usam, montados em seus cavalos, enfrentando o inverno do sul.

– Cor de pele de rato, falou Ernane, tentando valorizar mais o produto. A única coisa feia era justamente a cor cinza. Comprei a japona, que era um espetáculo, verdadeiro cobertor, esquentava meu corpo do pescoço até um palmo acima dos joelhos. E tinha dois bolsos profundos onde enfiava as mãos. Graças a esta roupa, enfrentei impávido noites e madrugadas glaciais no trajeto entre minha casa e o hospital no outro lado da rua, agüentei os corredores gelados do hospital e o vento encanado.

Uma noite, ao ser chamado ao ser chamado para atender um cliente no Hospital, não achei minha japona no guarda-roupa. Procurei noutro quarto e também não a encontrei.

– Uai, cadê minha japona?

Minha mulher dormia profundamente e não escutou minha pergunta. Vesti outro agasalho e fui atender a consulta. No dia seguinte, perguntei pela japona.

– Ah, você não usava mesmo aquela roupa horrorosa, dei para um pobre, respondeu Marília.

– O quê??? Você deu a minha japona Renner para um pobre?

– É, isso mesmo. Eu nunca vi você usando aquela japona, dei para um pobre.

– Você nunca me viu vestido com ela porque só a uso durante as madrugadas e você está sempre dormindo. Como você teve a coragem de dar a minha japona pros outros? Me fala para quem você deu que eu vou lá e dou outro agasalho em troca. Não conseguirei sobreviver sem a japona! – gritei.

Minha mulher, desolada, fez uma cara de quem pede desculpas, mas disse que agora está dado e que eu comprasse outro agasalho bom.

Fiquei aborrecido, transtornado. Um dia, no inverno, vi o faxineiro do hospital, o Bernardino, com uma japona igual a minha.

– Bonita japona, Bernardino, onde você comprou?

– Ah, doutor Stanley, foi dona Marília que deu pra mim. Deus te ajude, doutor. Ela disse que o senhor não usava mesmo, deu pra mim. Deus te ajude, doutor.

Era a minha japona!!!

Pensei em propor uma troca, mas não tive coragem. Em casa, xinguei mais um pouco minha mulher – e logo pro Bernardino, aquele chato! – e acabei aceitando a perda.

Uns dois anos mais tarde, ficamos sabendo que o Bernardino estava com câncer no estômago e, pouco depois, morreu. Fui ao velório na casa dele. Antes de entrar na casa, um pensamento veio rápido à minha mente: – Quem sabe a viúva aceita um negocinho e me devolve a japona?

Entrei na casa do Bernardino. Lá estava ele deitado no caixão, com as mãos cruzadas sobre a barriga, vestido com a minha japona Renner.

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Praça do Cinema

Crônica publicada no Livro “Confusão no Elevador”, lançado em 1995, pelo médico, cronista e escritor Stanley Baptista de Oliveira.

Há muitos anos, há mais de vinte, indo para o serviço, passo por todos os dias pela Praça Ayres Quaresma, a “praça do Cinema”. É uma praça quadrada; de um lado fica o imponente prédio do Colégio Estadual e, do outro, o chamado prédio do cinema que, na realidade, tem muito mais do que o Cine Monlevade. É um verdadeiro centro comercial. Só que, agora, tudo está fechado, abandonado, vias de ser demolido. Resiste, ainda funcionando, naquela praça, apenas o Colégio. A devolução é iminente e necessária, para atender as exigências do progresso, o programa de ampliação da Usina da Belgo-Mineira, mas não deixa de causar um aperto no coração ver aquelas instalações, aquelas lojas, todo aquele prédio que já teve tanta vida, tanto movimento, em vias de ser destruído. 

A lembrança de tempos passados, refletindo tantos anos em que atravessei, diariamente, aquela praça, vem à minha mente. Ouço vozes, sons, ruídos que não existem mais, revejo pessoas que povoaram aquele conjunto, pessoas que já morreram ou já se mudaram para outros lugares. Vejo “seu” Nerval (cujo nome era Enerval), magro, sempre bem arrumadinho, de terno e gravata, sorridente, na portaria ou na bilheteria do Cine Monlevade. Revejo meus filhos pequenos, na matinê das 10, aos domingos. Gritaria dentro do cinema. Balas. Pipoca.

Na esquina, o Bar Para Todos, de uma só porta, onde só cabiam dois fregueses ao mesmo tempo, apesar do nome. Foto Diló. Lá está o mestre Diló com sua Roleyflex, sua cabine para retratos 3 x 4, sua simpatia, agitado, querendo atender bem, ao mesmo tempo, todos os clientes. Ao lado do Foto Diló, o Bar do Bené, que já teve vários donos e vários nomes, mas, ao mesmo tempo em que eu frequentava, para um café com pão de queijo, o dono era o Bené do Bar. Enquanto eu tomava o cafezinho, à tarde, havia o papo rápido com o Jairo Dentista (que era meio surdo e só falava aos berros0 e a cena diária que eu, deliciado e escondido, assistia: uma professora, bem gordinha, sempre fazendo dieta para emagrecer, na hora do recreio do Colégio Estadual, atravessava a praça, entrava no bar e comprava duas cocadas (de coco queimado) e um pé-de-moleque, dos grandes. Jogava tudo dentro de sua bolsa preta para comer depois, às escondidas. Eu ficava rindo, vendo os deslizes que ela cometia na dieta que eu, sem colher resultados, lhe receitava. No Bar do Bené tinha, também, o Dudu, um velho magrelinho, com barbicha, sempre alegre e falando embolado, esperando a gorjeta para tomar mais uma dose de pinga.

No andar de cima do cinema, o Clube Ideal frequentado pela alta sociedade de Monlevade, naquele tempo encontrada na região perto da Usina (ruas Siderúrgica, Piracicaba, Beira-Rio, Tieté). Ingênuo, médico recém-chegado à cidade, eu esperava algum dia ser convidado para frequentar o clube, tornar-me sócio. Estou esperando até hoje. Até hoje, não. Até o dia em que o clube cerrou as portas, morreu, condenado à demo lição. Mais no canto da praça, depois do Foto Diló, descendo escadas, o Clube União Operária, sempre discreto e bem comportado, em cuja porta a moçada paquerava as domésticas e moreninhas, material da mais alta qualidade. Depois do União, bem no canto, havia uma coisa própria de cidade europeia: um mictório público! Em cujo mictório, numa noite de Natal, uma pessoa, depois de satisfazer suas necessidades, – ninguém sabe por quê – sacou o revólver e deu seis tiros nas demais pessoas que lá estavam: uma delas morreu, outro ficou paralítico da cintura para baixo. Não me recordo se ele suicidou em seguida, com um tiro no ouvido, o que seria tragédia demais para uma noite de Natal numa praça tão alegre e pacífica. A alegria, como até hoje, era mantida pela garotada risonha e barulhenta do Colégio Estadual.

Saio da praça e sigo em direção à Portaria 1 da Usina, andando pela galeria do cinema. Logo de cara, havia a Escola de Corte e Costura, ao lado do cinema, aos cuidados de Dona Anita Michalick. As mocinhas prendadas, alunas de D. Anita, flertando com os incautos passantes, esperavam, à porta, o início das aulas. Agora, a porta está fechada, a escola acabou. Aquelas mocinhas de então transformaram-se em gordas matronas, cheias de filhos e varizes.

Sigo pela velha galeria, cada dia mais suja e abandonada. As paredes estão emporcalhadas com retratos de esperançosos políticos, candidatos de eleições passadas. O teto está cheio de teia de aranha e pucumã, o chão com vômitos dos bêbados da noite passada, com seu cheiro azedo e enjoativo. Passo diante do portão de entrada da Rádio Cultura, que ficava no andar superior, onde brilhava o Coronel Gavião. Ao lado do estúdio e do barulhento auditório, numa convivência pacífica, mas muito esquisita, ficava o consultório do Dr. Jairo Dentista, onde eu sofria a tortura do motor, dos ferinhos, das injeções de anestesia, curtindo o som que vinha do toca-discos da rádio. Música caipira, Beatles. Agora o portão está fechado e não mais existe a Rádio Cultura, com o locutor lendo notícias do “Estado de Minas” e dizendo “conforme mostra a foto acima” ao final do noticiário; o Jairo dentista já se mudou para Belo Horizonte, tudo é silêncio, chão sujo de poeira, móveis quebrados empilhados na escada.

Subo dois degraus na galeria e passo, agora, diante do Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais, depois do Banco Nacional. Lá está “seu” Macedo, o gerente muito magro, cadavérico, fumando um cigarro atrás do outro, atendendo um cliente. No caixa está o Lincoln, vulgo “Don Toco”, gordo, vermelhão, suando muito. No balcão está o Zé Cláudio, muito educado e atencioso, vendendo fundos de investimento, “que primeiro vão lá embaixo, dão um suspiro para depois subir de novo”, tentando acalmar os que perderam dinheiro com esse interminável suspiro. O Banco não mais existe, “seu” Macedo e Lincoln já morreram, tudo está fechado pela pesada porta de aço. Também fechada está a agência dos Correios, onde revejo as duas simpáticas velhinhas no balcão, sempre muito lentas no atendimento e que nunca tinham troco. Às vezes, nem selos.

Depois dos Correios, vinha o ponto mais alegre e divertido daquele centro comercial: a Farmácia do Vicente! Lá, de pé, junto ao balcão, está meu velho amigo Vicente de Paula Neves, talvez o melhor amigo que tive em Monlevade, fumando sem parar, agora usando uma piteira com um filtro sensacional que, segundo ele, cercava toda a nicotina e alcatrão do cigarro. Eu não resisto. Entro na farmácia para um papo, ouvir as últimas piadas, a mais nova fofoca da cidade, rir com as gozações e brincadeiras do Vicente. Mas é pura imaginação, só lembranças do passado. Não existe mais a farmácia, que fechou, nem meu grande amigo Vicente, que morreu de câncer no pulmão provocado pelos cigarros que fumava, apesar de sua “sensacional” piteira com filtro.

No fundo do prédio, por uma porta estreita, subindo uma escada escura, também estreita, chegava-se ao consultório do Olavo Dentista. Eu gostava de estacionar o meu carro bem em frente a esta porta, fechando completamente a passagem, impedindo a entrada e saída de clientes do Olavo. Pura brincadeira de amigos. Como todo o resto, já não existe o consultório, e o Dr. Olavo continua dentista, felizmente vivo, mas trabalhando em outro local. Em Carneirinhos.

Revejo mais uma vez o antigo Centro Comercial. Tudo fechado e abandonado. Tudo acabado, prestes a ser demolido, apagado. Ficará, como diz o poeta, apenas uma lembrança na parede, mas como dói…

Permanecerão, enquanto eu ver, lembranças alegres daquelas pessoas e coisas que deram vida à famosa “praça do Cinema”, pessoas que já se foram, já se mudaram e coisas que envelheceram, perderam a finalidade, acabaram. Sentirei saudades e lembranças mais das pessoas que das coisas. Lembranças e saudades que não serão demolidas, jamais.

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Frases ouvidos no Consultório

*Stanley Baptita de Oliveira

Eu quero que o senhor receite um remédio pro meu marido: ele tem um suor fedorento que não agüento ficar perto dele. Ele fede a cavalo, fede a arreio de cavalo

Eu fumo rolão forte e tem que ser forte mesmo; se o fumo não tontear, não presta. E só bebo cachaça forte, das que descem queimando a goela. Cachaça tem que ser igual pimenta, tem que queimar a garganta e o bucho.

A esposa de um cliente telefonou contando que seu marido, meu cliente, é diabético e estava bebendo demais, todos os dias, que eu desse um “chega-pra-lá” nele  na próxima consulta. Quando, dias depois ele apareceu no consultório, falei que ele, sendo diabético, não deveria tomar bebidas alcoólicas e ele ponderou: – Doutor, mas se eu sentir muita vontade, em alguma ocasião especial, posso tomar pelo menos uma latinha de cerveja?- Bem, uma vez ou outra, pode tomar uma latinha.

Quando ele chegou em casa, falou para a esposa: – O doutor falou que cerveja em lata eu posso beber à vontade…

E sobre cliente que bebe, tem aquele outro que estava com umas alterações na função hepática, pedi-lhe que ficasse trinta  dias sem bebidas alcoólicas até nova avaliação. Poucos dias depois, por acaso, encontrei-me com ele num barzinho, diante de uma cerveja bem gelada e um cálice com “Veio de Minas”. Quando me viu, foi logo se justificando:- Doutor,  eu fiquei três dias sem beber e hoje estou provando um golinho. O senhor  falou para eu ficar trinta dias sem beber, mas não disse que eram trinta dias consecutivos…

O cliente, meio lunático, evangélico fanático, entrou no consultório e, sem mais delongas, foi pregando: – Doutor, o fim do mundo está próximo, está chegando. Quando o senhor ouvir as trombetas tocando, pode sair correndo que é o sinal do fim do mundo.

 O moço deu este conselho, mas não me ensinou para onde eu terei que sair correndo…

A velhinha de 92 anos de idade, muito magrinha, encurvada, caquentinha, depois de, ao lado da filha, contar todas as suas dores e seus males, falou: – Doutor para eu sarar estou precisando é disso, oh : e bateu a mão aberta sobre a outra mão fechada, aquele famoso e conhecido gesto… ( só mesmo Freud explica…)

– Doutor, eu tô com medo de encarangá e ficar encarangado (segundo o Aurélio, encarangar é ficar paralítico)

 Perguntou a cliente: – Doutor, eu quero saber qual cocô é o bom: é o que afunda ou o que fica boiando no vaso? E já que me fizeram esta pergunta difícil de responder, quero saber de algum colega Dermatologista ou Alergista que estiver lendo esta coluna: por que eu tenho alergia a desodorante só na axila esquerda? A axila esquerda fica coçando e vermelha, enquanto a axila direita nada sente de anormal.

– Doutor, eu acho que estou mesmo com Alzheimer, falou a cliente de sessenta e poucos anos. Outro dia, ninguém achava a garrafa térmica com café porque eu, distraída, a coloquei dentro da geladeira. Depois, jogando “buraco”, em vez de falar que tinha ficado “vulnerável”, falei que tinha ficado “menstruada”! Minhas amigas ficaram me olhando assustadas, rindo muito, até  que  percebi o engano…

– Ah, doutor, deu um panariço no dedão do pé, eu botei álcool e taquei fogo. Deu uma borbôia, mas depois sarou tudo. O dedão tá novo.

O cliente contou: – Outro dia fui consultar com o Dr. Mauro Bulhões e ele achou que eu era atleticano porque eu estava usando uma camisa preta e branca. Na véspera, o Cruzeiro tinha vencido o Atlético por cinco a zero. O Dr. Mauro falou pra mim que na próxima vez o Galo ia vingar, disse que o Galo era macho, era vingador. Eu fiquei bem calado porque se o Dr. Mauro soubesse que eu sou cruzeirense, tenho certeza que ele teria engessado meus dois braços e as duas pernas. Aquele doutor é mau, o senhor nem imagina…

Perguntei à cliente por que ela tinha parado de usar a Fluoxetina  sem minha orientação, ela respondeu:- Parei com a Fruxetina por minha vizinha falou que eu ia ficar viciada. – E por que parou com os remédios para pressão alta? – Eu parei porque  minha vizinha falou que o organismo acostuma com os remédio e eles não faz efeito. Agora só uso água benta do padre Marcelo Rossi.

– Eu consultei com o Dr. Franqui, ele falou que eu tinha que fazer uma doscopia. Eu fiquei com medo do exame, aquela goma descendo goela  abaixo, mas acabei concordando e, sabe duma coisa?, a doscopia me fez muito bem, desentupiu os bucho, melhorei tudo, sarou a má digestã.

Outro dia, um cliente da roça, caipirão mesmo, veio consultar, fiz o exame de praxe, medi sua pressão, escutei coração e pulmões. Na hora em que ia escrever a receita, ele perguntou: – Oh, doutô, o senhô não tem mais nenhum aparêio pra passá ni mim? Em falta de aparelho melhor, acendi uma lanterna e examinei seus ouvidos, não sei se gostou, se achou suficiente.

A cliente veio consultar com queixas que sugeriam uma infecção urinária. Perguntei se a urina estava com mau cheiro, com cheiro forte. Ela olhou bem firme para mim e disse: – Doutor, o senhor acha que depois que eu urino vou enfiar a cara na privada para sentir o cheiro da urina? (eu bem que podia ter dormido sem ouvir esta resposta…)

Atendi um velho engenheiro, já aposentado,  de apelido “Burro  Velho”, que se formara em Ouro Preto. Falei que eu ficara sabendo que ele, quando estudante, foi considerado o melhor jogador de futebol, o melhor jogador de sinuca e o melhor tocador de violão que já havia passado por Ouro Preto. Ele respondeu:- E o que mais me orgulha é ter sido considerado o melhor ladrão de galinhas que já passou por aquela cidade.

– Eu tôu com muito gás no pulmão. Melhora quando dou um arroto ou solto um pum.


O Médico na Cadeia!

Stanley Baptista de Oliveira

Eu era um médico recém-formado, aí por volta de 1962, e morava no Hotel Cassino, em João Monlevade. Era um domingo, eu estava deitado no quarto, esperando a hora do almoço, quando o Agostinho bateu na porta dizendo que dois soldados estavam no salão, me procurando.

– Dois soldados? O que eles querem comigo? – perguntei, meio assustado.

– Não sei, respondeu o garçom do hotel.

Desci ao salão e fui em direção aos soldados.

– O senhor é o médico?- perguntou um deles.

– Sou, por quê?

– O delegado mandou pegar o senhor e levá-lo para a delegacia.

Fiquei pálido. – Meu Deus, o que será que fiz de errado? – pensei.

– Tem um preso na cadeia que ficou doido e o delegado está precisando de um médico para dar um calmante nele.

Respirei fundo, aliviado. – Como está o preso? O que ele está fazendo? – perguntei.

– Ah, doutor, ele está gritando, xingando, ficou pelado e está batendo a cabeça na parede. Nós queríamos jogar um balde de água fria nele, mas o delegado não deixou, disse que um médico teria que cuidar dele.

Fiquei pensando qual providência médica seria adequada num caso desses.

– Tenho que ir ao hospital para pegar um calmante bem forte, seringa, agulhas, garrote.

– Não tem problema, nós estamos com a viatura aí fora, levamos o senhor.

Na farmácia do hospital, peguei o material necessário e o calmante injetável adequado àquele caso. Naquela época, existiam poucos sedativos injetáveis. Peguei uma ampola de Fenergan e outro remédio injetável chamado Siquil. Eu iria associar as duas ampolas e aplicá-las na veia do preso que, com toda certeza, ficaria mansinho. De novo na viatura, junto com os policiais, desci para a delegacia que, naquela época ficava perto da Usina, ao lado da praça do Mercado, atrás do armazém do Géo. Depois de passar por barracas de verduras, gaiolas

com galinhas, comerciantes que apregoavam seus produtos chegamos à delegacia de polícia. Era uma casa pequena com uma sala para o delegado, uma sala para os soldados e duas celas. Uma das celas estava vazia e, na outra, estava o elemento nu, assentado no chão. Com a nossa chegada, ele levantou o rosto, olhos arregalados, feições contraídas. Era um mulato forte, dava para assustar.

– Eu não vou entrar aí sozinho, falei para os soldados. Vocês vão ter que pegá-lo, esticar seu braço para fora da grade, aí eu aplico a injeção na veia dele e tudo se resolve.

Os soldados também não queriam entrar na cela e enfrentar aquele preso enfurecido. Um deles pegou uma lata com comida e a ofereceu ao preso. – Olha seu almoço aqui, vem pegar.

O preso, apesar do aspecto ensandecido, levantou-se do seu canto e encaminhou-se para a grade, para pegar a lata com o almoço. Ao tentar pegar a lata, sua mão foi violentamente puxada por um dos soldados para fora da grade. O outro soldado veio rápido ajudar o colega, segurando firme no braço do preso, enquanto o primeiro o puxava pelo punho. O doido deu um berro, começou a xingar palavrões, tentando cuspir nos soldados, com a cara espremida contra a grade.

– Me larga, seus desgraçados!

– Depressa, doutor! A veia do braço está no jeito!- gritava um soldado.

Enquanto isso, eu preparava a seringa. Fixei a agulha, ajustei o êmbolo, quebrei a ampola de Fenergan e aspirei o remédio para dentro da seringa, depois fiz a mesma coisa com a ampola de Siquil. No momento em que os dois remédios se misturaram na seringa, aconteceu um inesperado fenômeno químico, não previsto pela minha ignorância de recém-formado: as duas substâncias não se combinaram, ocorreu uma reação chamada floculação, formou-se uma espécie de gelatina branca dentro da seringa. Fiz uma careta e falei para os policiais: – Ih, não vai dar, não. O remédio está estragado, não tem jeito de aplicá-lo na veia do preso.

– Ah, doutor… Essa, não! – protestou um dos soldados. Tanto trabalho para nada?

– É, sinto muito, mas não tem jeito, não. O remédio deve estar velho, estragado e mostrei a seringa emperrada por aquela gosma branca, gelatinosa, resultado da mistura inadequada entre os dois remédios .

– E agora, o que vamos fazer com este doido?

O doido continuava gritando, xingando, cuspindo e esperneando enquanto os dois soldados ainda o seguravam firme pelo braço puxado para fora da grade.

Pensei em alguma medida capaz de acalmar aquele infeliz e só me ocorreu esta: – Ah, joguem um balde de água bem fria nele.

Dito isto, fui embora para o Hotel Cassino almoçar.


Ceia de Natal com Odete Roitman

Stanley Baptista de Oliveira

Convidei meu irmão para a ceia de Natal no meu apartamento. Seria uma festinha simples, com poucas pessoas, somente eu, minha mulher, ele, a mulher dele e sua filha, Tereza. Disse-lhe que meus filhos não poderiam vir e que eu e Marilia estávamos sós. Falei que seria um pouco triste ficarmos eu e minha mulher sozinhos no apartamento, em Belo Horizonte, numa noite de Natal, data em que as famílias comemoram juntas o nascimento de Cristo e que a companhia dele e da sua mulher e filha iriam alegrar muito a nossa ceia. Ainda disse o que iríamos servir: lombo de porco bem corado, farofa, arroz à grega e peru assado. Tomaríamos um uisquinho antes e um bom vinho chileno durante o jantar. Fiz tudo para seduzir meu irmão, mas ele raspou a garganta, gaguejou um pouco e desculpou-se: já estava comprometido com o irmão da sua mulher, o Betinho, iria cear na casa dele. Lamentou muito, disse que seria muito bom passar o Natal na minha casa, mas… – O Betinho insistiu muito, havia convidado com antecedência, e a Taninha, sua esposa , estava empolgada com a casa nova, ela mesma iria preparar o jantar…

Tudo bem, minha noite de Natal foi ao lado da Marilia, só nós dois no apartamento, isolados na cidade grande. Mas foi um jantar gostoso, comemoramos a data com alegria, fomos dormir cedo.

No dia seguinte, encontrei-me com meu irmão.

– Puxa vida! Eu devia ter aceitado o seu convite, falou ele. A nossa ceia de Natal foi terrível! Terrível! Chegamos à casa do meu cunhado, eu, a Lourdes e nossa filha, Tereza. O Betinho estava muito alegre, mostrou a casa nova, tudo muito chique e bem mobiliado. A Taninha, também estava alegre, empolgada, recebeu-nos muito bem. Ela falou que ela mesma estava assando o peru e preparando outros pratos. Enquanto a comida não ficava pronta, começamos a tomar uísque, vinho branco e comer uns petiscos. Minha mulher e minha filha não tomam bebida alcoólica, ficaram no refrigerante. A Taninha tomava uns bons goles de uísque e, de vez em quando, ia à cozinha dar umas verificadas nas panelas e no forno. Depois ela foi aumentando as doses de uísque, começou a rir muito, falar em voz alta, resolveu tocar pandeiro, cantar e rebolar. Ficou descalça e tocava pandeiro, cantava e rebolava, animadíssima. A minha mulher ficou com a cara fechada, sentindo-se desconfortável diante da evidente embriaguez da Taninha. Minha filha foi para outra sala e ligou a televisão. Betinho, também já bem tocado pela bebida, dava

gargalhadas, acompanhando a dança da mulher. Eu, calado, meio cabreiro, tomando meu uisquinho devagar. De repente, veio da cozinha um cheiro forte de carne queimada. A Taninha deu um grito:- Ai, meu Deus! O peru está queimando! Fomos todos correndo para a cozinha. Ela abriu o forno, saiu aquela fumaceira preta do peru esturricado. A Tânia começou a chorar e gritar:- Ai, o peru queimou! O meu peru queimou! Nós, consternados, em silêncio, vendo o desconsolo da dona da casa. Minha filha, Tereza, parada na porta da cozinha, teve a infeliz idéia de brincar com a tia e falou: – Bem feito. Você está parecendo a Odete Roitman ( que, tempos atrás, era personagem de uma novela da TV e vivia embriagada). Ah, meu irmão, a Taninha, que estava agachada diante do forno, levantou-se num pulo, cambaleando, e berrou para minha filha: – Odete Roitman? Você está me chamando de Odete Roitman? Você está me chamando de bêbada? Não admito isto! Pra fora da minha casa! Não admito ser ofendida dentro da minha casa! Pra fora todo mundo! Passa fora! E soltou um monte de palavrões.

Fomos embora com o rabo entre as pernas e tivemos que comer pizza com guaraná na cozinha da nossa casa, em plena noite de Natal, concluiu meu irmão, com uma gargalhada.


O QUÊ A HOLANDESA NÃO DISSE OU PORQUE NEM SEMPRE EU ME ORGULHO DE SER BRASILEIRODr. Stanley cria polêmica no caso da carta da holandesa

Marcelo Melo, no último número do seu jornal “Morro do Geo” , edição número 70 do dia 22 de janeiro de 2004, na seção “Opinião”, foi publicado um artigo com os comentários de uma holandesa (qual o nome dela?) sobre o Brasil. Comentários elogiosos sobre alguns aspectos relevantes, outros nem tanto. Não estou querendo desmerecer nosso país nem nosso povo mas não posso deixar de mostrar alguns defeitos brasileiros que a tal holandesa não viu e que me aborrecem, incomodam:

1) As péssimas condições das estradas, principalmente em Minas, um verdadeiro atentado à vida dos motoristas e passageiros, responsáveis por milhares de mortes e mutilações a cada ano, sem que medidas corretivas (nas estradas) sejam tomadas. Apesar disso, as multas aos motoristas que cometem infrações nessas estradas são extorsivas, esfolam o coitado do motorista, multas que não se revertem em benefício das estradas, na sua recuperação ou melhoria.

2) Existem pessoas que arrancam tampas de bueiros para vende-las no “ferro velho”, deixando aquele perigoso buraco no meio da rua, causando acidentes com pessoas e automóveis.

3) Diante do Juiz de Direito, os criminosos, principalmente os de “colarinho branco” (políticos, magistrados, delegados de polícia, donos de banco etc), podem mentir descaradamente durante seus depoimentos, sem que tais mentiras constituam  agravantes aos delitos sob investigação ou um desrespeito ao Juiz. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália (acho que também na Holanda) mentir para um Juiz é crime e agrava o crime sob investigação.

4) O porte de armas é considerado, há poucos meses, crime inafiançável, menos para os bandidos profissionais, que não estão “nem aí” para esta nova lei.

5) Bandidos com idade inferior a 18 anos podem assaltar, matar, estuprar, portar armas que nada lhes acontece, por força de um tal “Estatuto do menor”. Um bandido menor de idade (o famigerado “dimenor”), quando preso, mesmo que tenha matado dezenas de pessoas, ficará detido no máximo por (TRÊS) anos!!!  Parece “piada de português” mas é a realidade da lei penal brasileira, responsável por tantos crimes covardes cometidos por estes bandidos menores de idade, causa do paralisante medo que as pessoas de bem sentem ao sair à rua. Culpa, também, do pequeno número de turistas estrangeiros que se arriscam a visitar-nos, assustados com a conhecida violência urbana no Brasil.

A lei penal brasileira não pode proteger só os bandidos menores de idade. Vou citar um terrível exemplo: há alguns anos, em Belo Horizonte, uma criança de 4 anos, linda, filha de um médico meu conhecido, foi sequestrada por dois bandidos, irmãos, que pediram dinheiro pelo seu resgate. No cativeiro, como a criancinha estivesse chorando muito, os bandidos a sufocaram com algodão embebido em éter, matando-ª . Para esconder seu corpo, queimaram-na numa churrasqueira. Dias depois, os dois assassinos foram presos e condenados. Há cerca de um mês, depois de cumprir pouco mais de 6 anos de cadeia, um dos bandidos foi libertado, por bom comportamento…. Será que na Holanda é assim?

Por causa de situações com esta, a criminalidade no Brasil atingiu números assustadores e crescentes a cada dia. O nosso índice de mortes por assassinato é um dos maiores do Mundo. Também somos os campeões mundiais em mortes por acidentes de trânsito. Um dos campeões, também, no número de vagabundos, de todas as idades, que ficam pedindo esmola nos sinais de trânsito nas grandes cidades (flanelinhas, malabaristas, equilibristas, transformistas, artistas de todos os tipos), irritando os motoristas.

6) Os disparates das nossas leis trabalhistas nos enchem de vergonha. Leis que foram inocentemente elaboradas para beneficiar os trabalhadores, na realidade desvirtuaram-se devido às absurdas decisões judiciais, desincentivando as contratações de trabalhadores, especialmente domésticos e rurais, contribuindo para o grande número de desempregado no país.

7) Homens barbudos, mal-encarados, usando bonés vermelhos e dizendo-se membros de um certo “Movimento dos sem-terra”, podem invadir propriedades privadas, expulsando seus legítimos donos, que terão que lutar na justiça para reintegração de posse.

8) Linhas atrás, falei alguma coisa sobre turismo no Brasil. Como são maltratados os turistas no nosso país, principalmente os turistas brasileiros. Aqui, explora-se o turista, não o turismo. E nossas grandes atrações? Vou citar as decantadas praias do nordestes, sujas, poluídas, mar bravo, uma ventania de arrancar a cabeça. A paisagem é belíssima, mas o banho de mar impraticável, impossível na maioria dessas praias. Sobram as barracas e botecos com muita cerveja gelada, caipirinha, pagode e mulatas rebolando (aí, até que é bom).

9) As doenças que assolam o Brasil e que devem nos encher de vergonha: dengue, cólera, lepra, tuberculose, doença de Chagas, febre amarela, malária e outras mais que, há muitos anos, foram erradicadas nos países do Primeiro Mundo e que aqui ainda existem tal qual na Idade Média.

10) O sistema eletrônico utilizado nas nossas eleições desde o ano 2.000, tão merecidamente elogiado pela holandesa e pro pessoas de outros países. Pena que os políticos eleitos nos decepcionem e nos envergonhem com tanta roubalheira, malandragens e safadezas em geral.

11)  Existe no Brasil uma coisa da qual devemos realmente nos orgulhar e que não foi citado pela tal holandesa: a beleza das nossas mulheres. Pena que, em algumas regiões do Brasil, de modo especial no norte e nordeste, estas belas mulheres tornaram-se atrações para um certo “turismo sexual”, especialmente para homens vindos da Alemanha, Holanda e Portugal…

Marcelo Melo, perdoe-me por estas contestações e não vou estender o assunto para não incomodar mais as pessoas que não têm a mesma opinião que a minha. Não estou querendo pregar o pessimismo, apenas acho que, antes de concordar totalmente com a holandesa, temos que corrigir, com urgência, estas e outras mazelas que nos enchem de vergonha. Os brasileiros são, por natureza, alegres, bem-humorados, criativos, empreendedores mas são, também, indisciplinados, avessos às normas de convivência civilizada, isto é, bem educada. Superando estas nossas deficiências e corrigidas as distorções que citei acho que, aí sim, seremos um país do qual poderemos nos orgulhar. Por enquanto, deveríamos nos orgulhar mais de nós mesmos, por estarmos sobrevivendo num país tão difícil e complicado como o Brasil, apesar de algumas coisas boas que nos oferece.

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2 comentários “As Crônicas do Dr. Stanley!”

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