Ao centro, o Sr. Raimundo, entre os filhos e netos, sempre contando os casos de sua lida como um dos primeiros motoristas de ônibus da Empresa Asa Branca
Num dia qualquer de 1939, Dr. Ensch seguia, no conforto de seu Ford, rumo à Belo Horizonte, na companhia de seu motorista Raimundo Martins, também conhecido como “Raimundo Padeiro”, e de Dª Ceci, sua amantíssima esposa. Naqueles últimos quatro anos tornara-se rotina percorrer as mal traçadas estradas de terra que cortavam o montanhoso chão das Gerais; levantando poeira nos tempos de seca ou enfrentando a lama formada pelas chuvas sequentes. Passando por Carneirinhos, Pacas, Santa Bárbara, Sabará e Caeté chegava ele à Capital, onde tinha residência na Av. Amazonas com Av. Afonso Pena. Ainda aqui, nas redondezas, já enfrentava dificuldades: na forte subida do morro do cemitério de Carneirinhos, muitas e muitas vezes, o carro emperrava. Não havia motor que aguentasse!… Tanto se repetia tal fato que, para facilitar o trânsito dos caminhões que escoavam a produção da C.S.B.M., abriu-se um novo percurso. Este que conhecemos hoje em dia. Os Bicalho, proprietários do terreno foram, então, devidamente indenizados.
Na referida viagem, o infatigável Ford, fiel companheiro de tantas viagens, deu mostras de falência múltipla ao tentar subir o Morro São José, próximo à Lagoa Peti. Sentindo-se, literalmente, no mato sem cachorro, Dr. Ensch saiu do carro nervoso. O chapéu do Chile na cabeça e o charuto aceso nas mãos não o impediram de abrir o capô, liberando o fumacê intoxicante. Retirando o chapéu, abanou a cortina de fumaça para, assim, poder conferir melhor o estrago. Ajeitou os óculos, olhou aqui e ali, deu uma baforada no charuto e concluiu: seus altos conhecimentos metalúrgicos de nada adiantariam. Mecânica, definitivamente, não era a sua praia!… Raimundo, que, além de motorista, era padeiro e cozinheiro, tanto que, ao se aposentar foi trabalhar no Bar do Grêmio, ajudando o Sô José Miguel e Dª Zizica, conhecia os motores automotivos como a palma da mão, conferiu o estrago e sentenciou: – “Pifou geral, chefe”!
– “Quando não se tem opção, reza, confia e espera”, foram as decisivas palavras de Dª Ceci, que se recolheu ao interior do carro em busca de seu inseparável terço de madrepérola. Uma poeira na curva da estrada antecipou o ronco de um motor Volvo que, forçadamente, escalava o morro. Foi desnecessário o sinal para ele parar. Subia lento, pesado pela carga, quase voltando… Descendo do caminhão, o motorista foi logo, prestimoso, oferecendo ajuda. Era o Oswaldo Melo, caminhoneiro da cidade de Nova Lima, Estava fazendo frete justo para a Companhia, vejam só!… Curioso e prestativo, o Oswaldo também inspecionou o motor do Ford falido e fechou o veredito: – “Fudeu”!!! O Dr. Ensch logo olhou pra dentro do carro pra ver se Dª Ceci ouvira o descabido palavrão, mas nada: os vidros estavam fechados e ela, distraída, desfilava as contas de seu rosário nas mãos, pedindo ajuda aos céus… Decidiram, após breve conversa, que seguiriam viagem, Dª ceci e Dr. Ensch, na boléia do Volvo do Oswaldo enquanto Raimundo aguardava socorro junto ao Ford empoeirado.
Solavancando estrada afora, a conversa bem humorada e a cantoria do novalimense amenizava o contratempo do palavrão constrangedor. Dr. Ensch, que sabia reconhecer uma oportunidade para solucionar suas inúmeras pendências em tempos de implantação, entre elas, equacionar o problema do transporte rodoviário que escoasse a produção da Usina e garantisse o estoque de potencial energético gerado pelo carvão vegetal produzido em seus hortos florestais, lançou uma irrecusável proposta: – “Eu istarr prreciza muita de caminhons!… Ser parra transpor producion de Belgá Mineirra, sabe?!… Voce ser boa pessoa! Eu gostar de você!!… Aceita você fechar negocia comiga?!… Eu banca compra de dez caminhon e você vai paga eles com trrabalhiô. Devagarzinha, pressa nenhum”… Nascia ali a Transportadora Asa Branca, assim batizada por sugestão do próprio Dr. Ensch, que gostou muito da música do Gonzagão cantada pelo Oswaldo durante o trajeto.
Trabalho não faltava. A produção da C.S.B.M. estava em alta, as usinas de laminação estavam quase prontas e já se iniciavam as atividades no povoado de Várzea da Palma, para a fabricação de carvão vegetal nas matas de sua propriedade. Era só engaiolar as carrocerias e “sentar a pua!” pelos mais de 300 quilômetros de estrada de rodagem construídas pela Companhia e entregues ao tráfego público sem quaisquer restrições. Concentrado no trabalho, Oswaldo nem conseguia acreditar na sorte que lhe sorriu através de uma simples carona de beira de estrada… Seu Anjo da Guarda só podia estar de plantão… Em tempo recorde, pagou os caminhões e a Asa Branca transformou-se numa grande parceira da Belgo e uma reconhecida referência no transporte rodoviário. Com o tempo, para transportar os operários residentes em Carneirinhos e Vila Tanque até a Usina, Oswaldo Melo adquiriu umas jardineiras. Precisava de motoristas que as conduzissem segura e respeitosamente. Ficou sabendo de um tal de Raimundo. Bom de serviço, diziam… Já trabalhara na Vale, em Itabira, por doze anos. Apesar de nascido em Santa Maria de Itabira, já morara em Raposos, próximo a Nova Lima, trabalhando nas minas. Gente de confiança!… – “Chama ele e faz um teste!… Com este nome, só pode ser bom mesmo: é o mesmo do motorista do Dr. Ensch, reparou?!… Vamu vê se o cabra é tão bom quanto dizem”!… Não deu outra: no meio do caminho, ainda no Baú, estando perto de casa, o encarregado de supervisionar o teste falou: – “Pó-pará-esta-joça-qu’eu-tô-descendo!!!… Cê-num-precisa-de-ninguém-de-butuca-acesa-em-cima!… Cê-tá-melhor-que-nós-tudo-lá, sô!…Pode se considerar fichado! Vai com Deus e com cuidado!… Num tira os pé do freio, que daqui até lá é só descida!… Depois, lá na leiteria – sabe onde? – engata uma primeira e encara o Morro do Geo, que o ponto final é lá na Praça do Cinema, juntinho da Portaria Um”. E, assim, se fez! Raimundo Alexandre Gomes estava contratado como motorista da Transportadora Aviação Asa Branca!… Depois fichou-se na Belgo, transportando carvão até que o Teleférico, nos anos 60, tornou aquele serviço obsoleto. Os oitenta caminhões que faziam o serviço foram oferecidos aos seus condutores ao preço de 400 contos cada, em suaves prestações.
Raimundo viu ali uma oportunidade de se tornar independente, não podia deixar passar. Fechou negócio e seguiu a vida. Como ninguém pagava, nem ele!… A dívida acumulou, juros sobre juros, atingindo a cifra de 950 contos!… Acontece que os caminhões, com o passar do tempo, se valorizaram coisa de 400% e a Companhia resolveu readquiri-los. Raimundo não só saldou sua dívida com a Usina como, de rebarba, quitou todo o “pendurado” de cima a baixo da Getúlio Vargas, com os amigos comerciantes que lhe ampararam nos tempos difíceis, anotando nas cadernetas de crédito.
Hoje, quase centenário, merecidamente aposentado, após tanta labuta pelas estradas do Brasil, Sô Raimundo, saudoso da sua amada Rita e cercado pelos filhos Eduardo, Edison, Neném e Geraldinho, gosta de contar suas histórias pros netos Alexandre,
Adriana, Anderson e Luíza, lembrando, como se fosse ontem, dos seus primeiros tempos como carreteiro, aos oito anos de idade, conduzindo os incansáveis, bem nutridos e mansos bois de Modestino Novais, patrão de seu pai, estimulando-os na caminhada com o chocalho de argolas na ponta do varão, pra que, assim, dividissem com ele a sina do esforço contínuo e, muitas vezes, sem paga, da coleta de madeira. O atrito dos eixos, pincelados com óleo de mamona misturado com carvão socado, roncando leve, tirando o baixão – ruído este mais puro e belo de todos os cantos – pelas trilhas do descampado de Santa Maria, enchiam os seus ouvidos… Aquilo era música!!!… Nas descidas das serras, tão constantes na paisagem mineira, o menino Raimundo transferia os bois de corda para a retaguarda e jungia-os ao argolão atrás do carro. Era hora da “Ligeira”! Somente a junta de cabeçalho seguia na dianteira, os outros iam atrás, freando o carro morro abaixo.
Se podia guiar boi na infância, aos dezoito, homem feito, poderia conduzir gente, ponderou Raimundo. Empregou-se como ajudante de caminhão, em Barão de Cocais, com a família do Tenente e, de olho no motorista, foi aprendendo tudo que precisava para se tornar um igual. Quando se sentiu pronto, foi para Belo Horizonte tirar carteira de habilitação. Passaria por duas etapas: na primeira comprovaria seu conhecimento de motor (foi convidado a pagar propina de 10 contos na facilitação de um resultado positivo), em seguida, exame de rua. Aí foi moleza! Passou de primeira! Quase não acreditava! Estava aprovado! Iria, a pé, buscar seu ambicionado comprovante de habilitação. Mas carteira fica no bolso, ninguém vê! Coisa mais sem graça, sô!… Ele queria mesmo era se exibir pra todo mundo, afinal, agora, ele era um motorista devidamente autorizado pelos órgãos competentes do Estado de Minas Gerais a dirigir livremente pelas ruas e estradas do país! Sabe que nem precisou pensar muito! Um pulinho na Casa Cabana, logo ali na Avenida Amazonas e estava resolvido: comprou um quepe de motorista!
Ao chegar a Raposos, desceu do ônibus todo garboso: cabeça erguida, coluna ereta, ombros pra fora, barriga pra dentro, que nem um cadete do Exército, e, na cabeça, o quepe pretinho, como mandava o figurino: copa circular, baixa e desestruturada, com uma rígida viseira tão brilhosa que até refletia o bordado das letras aplicadas em linha amarela feito ouro na frente do quepe, pra todo mundo ver. As mesmas que estampavam o cabeçalho do documento bem guardado em seu bolso: MOTORISTA!