A fotografia acima retrata o que foi aquela greve, a maior da história da Belgo-Mineira, com os metalúrgicos ocupando a Usina, de julho a agosto de 1986. O saudoso Padre Antônio celebrava uma Missa em frente à Portaria do Zebrão, com a presença das famílias dos operários que estavam participando do movimento
A vida político-partidária em João Monlevade continuava morna. A surpresa viria por ser ano eleitoral, quando o líder sindical João Paulo Pires de Vasconcelos elegeu-se deputado federal constituinte, naquele novembro do ano de 1986, pelo Partido dos Trabalhadores. Teve apoio não apenas da militância, mas da grande maioria do eleitorado monlevadense. E ele era considerado uma referência no meio sindical. Outro fato viria contribuir bastante para a vitória de João Paulo nas urnas: a famosa greve dos 23 dias, a mais longa da história ocorrida na Usina da Belgo-Mineira e portanto na cidade, que teve início em 16 de julho de 1986. O movimento sindical conspirava a favor do PT, que ia ganhando força na cidade operária. E a comunidade de Monlevade viveria um momento único, de muita instabilidade econômica e emocional. A greve foi iniciada normalmente, com troca de turnos e a paralisação dentro da fábrica. Mas, a partir de cinco dias de movimento, um acordo entre as lideranças grevistas e os operários resolvem promover ocupação dentro da Usina. Naquele dia, os trabalhadores que entraram no trabalho no turno das 15 horas não largaram às 23 horas, e cerca de mil metalúrgicos permaneceram dentro da Usina. Não tinha mais volta. Ali era iniciada uma greve que jamais seria esquecida na história do município e, principalmente, dos operários, que se confinaram naquele espaço de aço e concreto, sem ver pais, esposas, filhos, ou seja, de toda família.
A Viagem ao sul!
Entretanto, uma história no mínimo curiosa marcaria minha trajetória jornalística no decorrer daquele movimento. Estávamos no final de junho e eu havia requerido minhas primeiras férias na Rádio Cultura para o dia 14 de julho, uma segunda-feira.
Uma de minhas irmãs que residia em belo horizonte havia se mudado com a família para Montenegro, cidade 70 quilômetros distante de Porto Alegre. Era minha oportunidade de conhecer o sul do país e ainda realizar um antigo sonho, que seria fazer minha primeira viagem aérea. Férias combinadas e passagens compradas. Fomos eu, minha noiva e a cunhada. Quando marquei as férias, havia uma conversa nos bastidores de que poderia ocorrer uma greve dos metalúrgicos. Na sexta-feira, dia 11, fui trabalhar e receber o dinheiro das férias, já que a viagem estava marcada para segunda-feira pela manhã. O vôo sairia de Confins somente à tarde. Surpesa: Elmar me chama para o canto da sala e me comunica que eu não poderia mais tirar férias porque a greve seria deflagrada na semana seguinte. E a informação dele era segura. Disse que sentia muito, mas não adiaria a viagem. Ele insistiu até dar o ultimato: – “Se viajar, te mando embora”. E eu rebati: – “Então pague o que a rádio me deve neste ano de trabalho, porque vou viajar mesmo”! Ele então honrou seu compromisso, ou seja, pagou minhas férias e disse que, quando voltasse de viagem, faríamos o acerto. Eu viajaria demitido e não de férias. Mas fui tranquilo e em momento algum me estressei com o fato. Afinal, ainda estava seguro o meu emprego no jornal. Nem contei nada à noiva. Vamos, que o Rio Grande nos espera!
Chegamos na noite do dia 14 em Porto Alegre, por volta das 20 horas, e meu cunhado nos aguardava no aeroporto . De lá até Montenegro, mais ou menos uma hora de viagem. Vinho e cerveja na recepção, com um bom churrasco. Foi uma viagem maravilhosa, e a intenção era ficar por ali duas semanas. O reencontro com a irmã e as sobrinhas. Conhecemos lugares fantásticos situados na serra gaúcha, em pleno inverno. Conhecemos outras cidades maravilhosas. fizemos muitas fotos, convivemos com pessoas maravilhosas. Enfim, tudo abençoado! Contudo, um fato acabou por antecipar a volta. Era uma segunda-feira, dia 21. Uma semana em viagem e cinco dias de greve e, na casa de minha irmã, eu ligado no “Jornal Nacional”, e nós ali, na prosa e degustando um bom vinho. De repente, Cid Moreira informa que “um tiro foi disparado durante a greve dos metalúrgicos, na cidade de João Monlevade, Minas Gerais. A bala não atingiu nenhuma pessoa e foi disparada de uma arma, Calibre 38, em frente ao Vestiário Central da Usina da Belgo-Mineira. Ainda não chegaram ao responsável pelo disparo”. Aquela notícia acabou por atiçar a minha vontade de retornar a Monlevade. Algo como, talvez, o instinto de jornalista mexeu comigo, e, imediatamente, senti que eu tinha de estar ali, acompanhando o movimento grevista. Não sabia por que cargas d´água, mas senti que a rádio precisava de mim.
Mudanças de planos e conversei com Marilene e Déa, e elas aceitaram antecipar o retorno. Havíamos aproveitado bem aqueles oito dias, de ótimas companhias e ares novos. O problema, ou seja, a parte sofrida de toda viagem, aconteceu na volta. Não havia vôos nos próximos dias e retornamos de ônibus. Saímos de Porto Alegre na terça-feira à noite, dia 22, via São Paulo. Chegamos na tarde de quarta-feira a São Paulo, onde conseguimos um ônibus, que deixou o Terminal Rodoviário da capital paulista por volta de 20 horas, em direção a Ponte Nova. Isso mesmo, Ponte Nova! Desembarcamos, moídos. De lá embarcamos numa quase “Jardineira” da Lopes, até João Monlevade. Manhã de quinta-feira, dia 24 de julho de 1986, chegada ao nosso destino. Ninguém em sã consciência imaginaria que estávamos chegando do sul do país. Todos empoeirados, despenteados. Depois iríamos dar boas gargalhadas daquela viagem, com certeza!
Demissão e o Retorno em menos de 24 horas, e quase um “linchamento”!
Já previa minha demissão e meu pressentimento se concretizou. Apresentei-me no mesmo dia à emissora, na quinta-feira, dia 24 de julho. Cheguei à sala de Elmar, sem informá-lo, antes mesmo de duas da tarde. Ele já havia chegado e, tentando não se mostrar surpreso, mandou-me assentar e foi logo tirando minha carteira profissional e uma carta de aviso prévio. Estava tudo prontinho só aguardando minha última visita. E disse: – “Aqui estão seus documentos e seu aviso. Não precisa cumpri-lo”. E rasgou na minha frente a carta. Minha vontade foi de avançar sobre ele, diante de minha ira naquele instante. Segurei-me na cadeira, e ainda perguntei: – “Algum repórter foi contratado em meu lugar”? Ele balançou a cabeça e, em tom de poucos amigos, disse apenas que “contratei o Will Jony, mas ele ficou apenas alguns dias”. Levantei-me, não me despedi de nenhum colega e peguei o primeiro ônibus que descia para o Zebrão. Lá, uma grata surpresa que mudaria toda a história sobre minha demissão, ainda mais sem cumprir o aviso prévio…
Assim que desci do ônibus, deparo-me com Wilson Bastieri, João Paulo e João Batista dos Mares Guia, primeiro deputado estadual eleito pelo PT em Minas, nas eleições de 1982. Eles desciam a rampa do Zebrão, onde havia ocorrido o tal tiro que antecipara nossa viagem. Como quem não queria nada, aproximei-me de Bastieri, dizendo que estava em viagem, de férias, mas queria informações sobre o movimento. Ele atendeu prontamente e fiz a pergunta que mudaria todo o rumo de minha trajetória na emissora – “Bastieri, há operários saindo de dentro da Usina”? Ele, informalmente, respondeu – talvez se esquecendo de que ali estava a palavra de um dos líderes do movimento grevista. Falando a um repórter ( e não foi usado o termo “in off”) – “Não, Marcelo. Ocorre o contrário, pois existem metalúrgicos entrando na Usina”. E sorriu, como se estivesse fazendo uma brincadeira. Mas eu não pensei duas vezes: aquilo seria um furo de reportagem. Mesmo tendo acabado de ser demitido, minha veia jornalística falou mais alto. Não poderia perder aquela oportunidade, aquela notícia em primeira mão. Somente poderiam estar dentro da Usina os operários que iniciaram a greve. Desci a pé, quase correndo, do Zebrão até o Restaurante Rampa´s, porque somente lá existia um telefônico público, o famoso “Orelhão” – naquele tempo se usavam fichas. Faltavam poucos minutos, talvez dois, para três da tarde. E o noticiário era na hora cheia. Liguei direto para o estúdio e pedi ao locutor Carlos Moreira – que comandava o horário vespertino -, que me colocasse no ar. Ele se assustou, porque pensava que eu ainda estava viajando. E muito menos tinha conhecimento de meu desligamento da rádio. Dei para ele a manchete de “mão beijada”: “Dirigente sindical afirma que operários estão entrando na Usina”. Dali do Rampa´s fui para casa, a República ali na “Rua do Sapo”, Vila Tanque. Antes, uma parada no “Bar Laudir” para beber uma cerveja e reencontrar os amigos. Ali, a “Rádio Peão” já comentava o noticiário das 15 horas que foi ao ar pela Tiradentes/Globo. Como eu previa, a notícia provocou o efeito que eu desejava. Minha intuição estava certa. Valeram as férias, mas voltar para casa foi fundamental para a minha profissão.
Sexta-feira, 25 de julho, a campainha toca em casa. Não eram nem 7 horas. Ouvi apenas o barulho do motor de uma Brasília, que conhecia de longe. – “O que Elmar está fazendo aqui uma hora dessas? O cara já me demitiu e agora quer o quê?”, questionava comigo mesmo. Abro a porta e ele já chega dando ordens: – “ Vá colocar a roupa para ir trabalhar”. Ah, naquela hora senti-me por cima da “carne seca” e com vontade de mandá-lo à merda. Mas orgulho e vingança naquele instante não seria o melhor remédio; poderia ser guardado na geladeira. O importante é que havia feito o trabalho certo e minha notícia mudaria alguns planos, até mesmo a relação comercial entre a Belgo-Mineira e a Rádio Tiradentes/Globo. E eu reassumia minhas funções como repórter e redator-chefe da emissora, ao lado dos locutores Jota Anjos, Carlos Moreira e Geraldo Cardozo.
E assim iniciava novo ciclo: eu de volta às minhas origens e o clima da greve ainda mais quente. Vinte e quatro horas depois de minha demissão, estava eu aguardando um ônibus no Satélite para descer até a Portaria do Zebrão. De gravador em punho, máquina fotográfica e uma vontade louca de dar outra notícia bombástica. Mas, para minha surpresa, não fui recebido como esperava. Tão logo desembarquei do coletivo, nem imaginava que estava prestes a ser agredido fisicamente. Dirigentes sindicais começaram a apontar em minha direção com olhares de lobo à procura da caça. Famintos pela minha cabeça. Pensava que seria literalmente linchado ali, em frente à Portaria do Zebrão. Lembro-me de ter visto “Beiço”, Tozati, Guido, Gilberto e outros diretores, além das professoras Celeste Semião e Terezinha Mariano, que coordenavam o QG e a cozinha que havia sido montados em frente ao Vestiário Central. Foram se aproximando e gritando: – “Foi este aí. Foi este repórter que mandou colocar a notícia na rádio de que estávamos invadindo a Usina”. E vinham sedentos como querendo se vingar. Eu, paralisado, atônito, sem saber o que fazer, a não ser proteger meu rosto (sic). Mais uma vez, a mesma cena da tarde anterior: descendo a rampa do Zebrão as figuras de Wilson Bastieri, João Paulo e do deputado Mares Guia. Gritei: – “Basteiri, o que está acontecendo?” Me fiz de rogado para não ser agredido. Mesmo também querendo ver minha caveira, ele se mostrou lúcido e pediu aos “companheiros” que se afastassem. Um a um, foram-se afastando, mas seus olhares me “engoliam”. Ato seguinte: foi a vez de Bastieri me pedir satisfações, questionando minha atitude. O motivo pelo qual havia colocado aquela notícia no ar. – “Marcelo, você me disse ontem que estava de férias. Estávamos tendo uma conversa informal e você solta aquilo no rádio. Quase complica todo nosso planejamento”. Eu, justificando, rebati: – “Desculpe, mas sou repórter 24 horas por dia. E em nenhum momento você disse que era ‘in off’.” Ele se despediu, enquanto João Paulo só me observava. O clima de hostilidade era menor, mas ainda me deixava intranquilo. Até que me aproximei da grade e vi Antônio Ramos do lado de dentro da Usina. Chamei-o para uma conversa. Disse que queria uma entrevista, naquele momento, com ele e Leonardo Diniz, que também era ocupante da Usina. E consegui meu intento: uma entrevista exclusiva de mais de meia hora, com o gravador ligado encostado entre as grades. No outro dia, a matéria foi ao ar e bateu recorde de audiência. Provocou um enorme frisson, principalmente na esfera patronal. A Belgo-Mineira queria o mesmo espaço na emissora.
*Do Livro A Saga: Memórias de um Jornalista do Interior” – Parte X
Autoria: Jornalista Marcelo M. Melo!