A Greve dos 23 dias e a cidade para!

A  vida político-partidária em João Monlevade continuava morna.  A surpresa  viria  por  ser  ano  eleitoral,  quando  o  líder  sindical  João Paulo  Pires  de  Vasconcelos  elegeu-se  deputado  federal constituinte,  naquele  novembro  do  ano  de  1986,  pelo  Partido dos  Trabalhadores.  Teve  apoio  não  apenas  da  militância,  mas  da grande  maioria  do  eleitorado  monlevadense.  E  ele  era considerado  uma  referência  no  meio  sindical.  Outro  fato  viria contribuir  bastante  para  a  vitória  de  João  Paulo  nas  urnas:  a famosa  greve  dos  23  dias,  a  mais  longa  da  história  ocorrida na Usina da Belgo-Mineira e portanto na cidade,  que  teve  início  em  16  de  julho  de  1986.  O movimento  sindical  conspirava  a  favor  do  PT,  que  ia  ganhando força  na  cidade  operária.  E  a  comunidade  de  Monlevade  viveria um  momento  único,  de  muita  instabilidade  econômica  e emocional.  A greve  foi  iniciada  normalmente,  com  troca  de turnos   e  a  paralisação  dentro  da  fábrica.  Mas,  a  partir  de cinco  dias  de  movimento,  um  acordo  entre  as lideranças grevistas  e  os  operários  resolvem  promover  ocupação  dentro  da Usina.  Naquele  dia,  os  trabalhadores  que  entraram  no  trabalho no turno das 15 horas não largaram às 23 horas, e cerca de mil metalúrgicos  permaneceram  dentro  da  Usina.  Não  tinha  mais volta.  Ali  era  iniciada  uma  greve  que  jamais  seria  esquecida  na história  do município  e,  principalmente,  dos  operários, que  se  confinaram  naquele  espaço  de  aço  e  concreto,  sem  ver pais,  esposas, filhos, ou seja, de toda família.

A Viagem ao sul!

Entretanto,  uma  história  no  mínimo  curiosa  marcaria  minha trajetória jornalística no decorrer daquele movimento. Estávamos no final de junho e eu havia requerido minhas primeiras férias na Rádio Cultura  para  o  dia  14  de  julho,  uma segunda-feira.

Uma de minhas irmãs que residia em belo horizonte havia se mudado com a família para  Montenegro, cidade  70  quilômetros  distante  de  Porto  Alegre.  Era  minha oportunidade  de  conhecer  o  sul  do  país  e  ainda realizar um antigo sonho, que seria fazer minha primeira viagem aérea. Férias  combinadas  e  passagens  compradas.  Fomos  eu,  minha  noiva  e  a  cunhada.  Quando marquei  as  férias,  havia  uma  conversa  nos bastidores  de  que poderia  ocorrer  uma  greve  dos  metalúrgicos.  Na  sexta-feira,  dia 11, fui  trabalhar  e  receber  o  dinheiro  das  férias,  já  que  a  viagem estava  marcada  para  segunda-feira  pela  manhã.  O  vôo  sairia  de Confins  somente  à  tarde.  Surpesa: Elmar  me  chama  para  o  canto  da  sala  e me  comunica  que  eu  não  poderia  mais  tirar  férias  porque  a  greve seria  deflagrada  na  semana  seguinte.  E  a  informação  dele  era segura.  Disse  que  sentia  muito,  mas  não  adiaria  a  viagem. Ele  insistiu  até  dar  o  ultimato:  –  “Se  viajar,  te  mando  embora”.  E eu  rebati:  – “Então  pague  o  que  a  rádio  me  deve  neste  ano  de trabalho,  porque  vou  viajar  mesmo”!  Ele então honrou seu compromisso, ou seja, pagou  minhas férias  e  disse  que,  quando  voltasse  de  viagem,  faríamos  o  acerto. Eu  viajaria  demitido  e  não  de  férias.  Mas  fui  tranquilo  e  em   momento  algum  me  estressei  com  o  fato. Afinal, ainda estava seguro o meu emprego no jornal. Nem  contei  nada  à  noiva.  Vamos,  que  o  Rio  Grande  nos  espera!

Chegamos  na  noite  do  dia  14 em Porto Alegre,  por  volta  das  20  horas,  e  meu cunhado  nos  aguardava  no  aeroporto .  De  lá  até Montenegro,  mais  ou  menos  uma  hora  de  viagem.  Vinho  e cerveja  na  recepção,  com  um  bom  churrasco.  Foi  uma  viagem maravilhosa,  e  a  intenção  era  ficar  por  ali  duas  semanas. O reencontro com a irmã e as sobrinhas. Conhecemos  lugares  fantásticos  situados  na  serra  gaúcha,  em pleno  inverno.  Conhecemos outras cidades maravilhosas. fizemos  muitas  fotos,  convivemos  com  pessoas  maravilhosas.  Enfim, tudo abençoado! Contudo,  um  fato  acabou  por  antecipar  a  volta.  Era  uma  segunda-feira,  dia  21. Uma semana  em  viagem  e  cinco dias  de  greve  e,  na  casa  de  minha  irmã,  eu  ligado  no  “Jornal Nacional”, e nós ali, na prosa e degustando um bom vinho.  De  repente,  Cid  Moreira  informa  que  “um  tiro  foi disparado durante a greve dos metalúrgicos, na cidade de João Monlevade,  Minas  Gerais.  A bala  não  atingiu  nenhuma  pessoa  e foi  disparada  de  uma  arma, Calibre  38,  em  frente  ao  Vestiário Central  da  Usina  da  Belgo-Mineira.  Ainda  não  chegaram  ao responsável  pelo  disparo”. Aquela  notícia  acabou  por  atiçar  a minha  vontade  de  retornar  a  Monlevade. Algo  como,  talvez,  o instinto  de jornalista mexeu  comigo,  e, imediatamente,  senti  que  eu  tinha  de  estar  ali,  acompanhando  o movimento  grevista.  Não  sabia  por  que  cargas  d´água,  mas  senti que a rádio  precisava  de  mim. 

Mudanças de planos e conversei  com  Marilene  e  Déa,  e  elas aceitaram  antecipar  o  retorno.  Havíamos  aproveitado  bem aqueles  oito  dias,  de  ótimas  companhias  e  ares  novos.  O problema,  ou  seja,  a  parte  sofrida  de  toda  viagem,  aconteceu  na volta.  Não  havia  vôos  nos  próximos  dias  e  retornamos  de ônibus.  Saímos  de  Porto  Alegre  na  terça-feira  à  noite,  dia  22,  via São  Paulo.  Chegamos  na  tarde  de  quarta-feira  a  São  Paulo,  onde conseguimos  um  ônibus,  que  deixou  o  Terminal  Rodoviário  da capital  paulista  por  volta  de  20  horas,  em  direção  a  Ponte  Nova. Isso mesmo, Ponte Nova! Desembarcamos,  moídos.  De  lá  embarcamos  numa  quase  “Jardineira”  da Lopes, até João Monlevade. Manhã de quinta-feira, dia 24 de julho de 1986, chegada ao nosso destino. Ninguém em sã consciência imaginaria que estávamos chegando do sul do país. Todos empoeirados, despenteados. Depois iríamos dar boas gargalhadas daquela viagem, com certeza!

Demissão e o Retorno em menos de 24 horas, e quase um “linchamento”!

Já  previa  minha  demissão  e  meu  pressentimento  se  concretizou. Apresentei-me no mesmo dia à emissora, na quinta-feira, dia 24 de julho. Cheguei  à  sala  de  Elmar,  sem  informá-lo,  antes  mesmo  de  duas da  tarde.  Ele  já  havia  chegado  e,  tentando  não  se  mostrar surpreso,  mandou-me  assentar  e  foi  logo  tirando  minha  carteira  profissional  e  uma  carta  de  aviso  prévio.  Estava  tudo  prontinho só  aguardando  minha  última  visita.  E  disse:  – “Aqui  estão  seus documentos  e  seu  aviso.  Não  precisa  cumpri-lo”.  E  rasgou  na minha  frente  a  carta.  Minha  vontade  foi  de  avançar  sobre  ele, diante  de  minha  ira  naquele  instante.  Segurei-me  na  cadeira,  e ainda  perguntei:  –  “Algum  repórter  foi  contratado  em  meu lugar”?  Ele  balançou  a  cabeça  e,  em  tom  de  poucos  amigos, disse  apenas  que  “contratei  o  Will  Jony,  mas  ele  ficou  apenas  alguns  dias”.  Levantei-me,  não  me  despedi  de  nenhum  colega  e peguei  o  primeiro  ônibus  que  descia  para  o  Zebrão.  Lá,  uma grata  surpresa  que  mudaria  toda  a  história  sobre  minha demissão, ainda mais sem cumprir o aviso prévio…

Assim  que  desci  do  ônibus,  deparo-me  com  Wilson  Bastieri, João  Paulo  e  João  Batista  dos  Mares  Guia,  primeiro deputado  estadual  eleito  pelo  PT em  Minas,  nas  eleições  de 1982.  Eles  desciam  a  rampa  do  Zebrão,  onde  havia  ocorrido  o tal tiro que antecipara nossa viagem. Como  quem  não  queria  nada,  aproximei-me  de  Bastieri, dizendo  que  estava  em  viagem,  de  férias,  mas  queria informações  sobre  o  movimento.  Ele  atendeu  prontamente  e  fiz  a pergunta  que  mudaria  todo  o  rumo  de  minha  trajetória na emissora  – “Bastieri,  há  operários  saindo  de  dentro  da  Usina”?  Ele, informalmente,  respondeu  –  talvez  se  esquecendo  de  que  ali estava  a  palavra  de  um  dos  líderes  do  movimento  grevista.  Falando a um repórter ( e não foi usado o termo “in off”) – “Não,  Marcelo.  Ocorre  o  contrário,  pois  existem  metalúrgicos entrando  na  Usina”.  E  sorriu,  como  se  estivesse  fazendo  uma brincadeira.  Mas  eu  não  pensei  duas  vezes:  aquilo  seria  um  furo de  reportagem.  Mesmo  tendo  acabado  de  ser  demitido,  minha veia  jornalística  falou  mais  alto.  Não  poderia  perder  aquela oportunidade,  aquela  notícia  em  primeira  mão.  Somente poderiam  estar  dentro  da  Usina  os  operários  que  iniciaram  a greve.  Desci  a  pé,  quase  correndo,  do  Zebrão  até  o  Restaurante Rampa´s,  porque  somente  lá  existia  um  telefônico  público,  o famoso  “Orelhão”  –  naquele  tempo  se  usavam  fichas.  Faltavam poucos  minutos,  talvez  dois,  para  três  da  tarde.  E  o  noticiário  era na  hora  cheia.  Liguei  direto  para  o  estúdio  e  pedi  ao  locutor Carlos  Moreira  –  que  comandava  o  horário  vespertino  -,  que  me colocasse  no  ar.  Ele  se  assustou,  porque  pensava  que  eu  ainda estava  viajando.  E  muito  menos  tinha  conhecimento  de  meu desligamento  da  rádio.  Dei  para  ele  a  manchete  de  “mão  beijada”:  “Dirigente  sindical  afirma  que  operários  estão entrando  na  Usina”.  Dali  do  Rampa´s  fui  para  casa,  a  República ali na  “Rua  do  Sapo”,   Vila  Tanque.  Antes,  uma  parada  no  “Bar Laudir”  para  beber  uma  cerveja  e  reencontrar  os  amigos.  Ali, a  “Rádio  Peão” já  comentava  o  noticiário  das  15  horas  que  foi  ao ar  pela  Tiradentes/Globo.  Como  eu  previa,  a  notícia  provocou  o efeito  que  eu  desejava.  Minha  intuição  estava  certa.  Valeram  as férias,  mas  voltar  para  casa  foi  fundamental para a minha profissão.

Sexta-feira,  25 de julho,  a  campainha  toca  em  casa.  Não  eram  nem  7 horas.  Ouvi  apenas  o  barulho  do  motor  de  uma  Brasília,  que conhecia  de  longe.  – “O  que  Elmar  está  fazendo  aqui  uma  hora dessas?  O  cara já  me  demitiu  e  agora  quer  o  quê?”,  questionava comigo  mesmo. Abro  a  porta  e  ele  já  chega  dando  ordens:  – “ Vá colocar  a  roupa  para  ir  trabalhar”.  Ah,  naquela  hora  senti-me  por cima  da  “carne  seca”  e  com  vontade  de  mandá-lo  à  merda.  Mas orgulho  e vingança naquele  instante  não  seria  o  melhor remédio; poderia  ser  guardado  na  geladeira.  O  importante  é  que havia  feito  o  trabalho  certo  e  minha  notícia  mudaria  alguns planos,  até  mesmo  a  relação  comercial  entre  a  Belgo-Mineira  e a  Rádio  Tiradentes/Globo.  E  eu  reassumia  minhas  funções como  repórter  e  redator-chefe  da  emissora,  ao  lado  dos locutores  Jota Anjos,  Carlos  Moreira  e  Geraldo  Cardozo.

E  assim  iniciava  novo  ciclo:  eu  de  volta  às  minhas  origens  e  o clima  da  greve  ainda  mais  quente.  Vinte  e  quatro  horas  depois  de minha  demissão,  estava  eu  aguardando  um  ônibus  no  Satélite para  descer  até  a  Portaria  do  Zebrão.  De  gravador  em  punho, máquina  fotográfica  e  uma  vontade  louca  de  dar  outra  notícia bombástica. Mas, para  minha  surpresa,  não  fui  recebido  como esperava.  Tão  logo  desembarquei  do  coletivo,  nem  imaginava que  estava  prestes  a  ser  agredido  fisicamente.  Dirigentes sindicais  começaram  a  apontar  em  minha  direção  com  olhares de  lobo  à  procura  da  caça.  Famintos  pela  minha  cabeça. Pensava que seria literalmente linchado ali, em frente à Portaria do Zebrão. Lembro-me  de  ter  visto  “Beiço”,  Tozati,  Guido,  Gilberto  e outros  diretores,  além  das  professoras  Celeste  Semião  e Terezinha  Mariano,  que  coordenavam  o  QG  e  a  cozinha  que havia  sido  montados  em  frente  ao  Vestiário  Central.  Foram  se aproximando  e  gritando:  –  “Foi  este  aí.  Foi  este  repórter  que mandou  colocar  a  notícia  na  rádio  de  que  estávamos  invadindo  a Usina”.  E  vinham  sedentos  como  querendo se  vingar.  Eu, paralisado,  atônito, sem  saber  o  que  fazer,  a  não  ser  proteger meu  rosto  (sic).  Mais  uma  vez,  a  mesma  cena  da  tarde  anterior: descendo  a  rampa  do  Zebrão  as figuras  de  Wilson  Bastieri,  João Paulo e do deputado Mares Guia. Gritei: – “Basteiri, o que está acontecendo?”  Me  fiz  de  rogado  para  não  ser  agredido.  Mesmo também  querendo  ver  minha  caveira,  ele  se  mostrou  lúcido  e pediu  aos  “companheiros”  que  se  afastassem.  Um  a  um, foram-se  afastando,  mas  seus  olhares  me  “engoliam”.  Ato  seguinte: foi a  vez  de  Bastieri  me  pedir  satisfações,  questionando  minha atitude.  O  motivo  pelo  qual  havia  colocado  aquela  notícia  no  ar. – “Marcelo,  você  me  disse  ontem  que  estava  de  férias. Estávamos  tendo  uma conversa  informal  e  você  solta  aquilo  no rádio. Quase complica todo nosso planejamento”. Eu, justificando,  rebati:  –  “Desculpe,  mas  sou repórter  24  horas  por dia.  E  em  nenhum  momento  você  disse  que  era  ‘in  off’.”  Ele  se despediu,  enquanto  João  Paulo  só  me  observava.  O clima de hostilidade era  menor, mas  ainda  me  deixava  intranquilo.  Até  que  me aproximei  da  grade  e  vi  Antônio  Ramos  do  lado  de  dentro da Usina. Chamei-o  para  uma  conversa.  Disse  que  queria  uma  entrevista, naquele momento, com ele e Leonardo Diniz, que também era ocupante  da  Usina.  E  consegui  meu  intento:  uma  entrevista exclusiva  de  mais  de  meia  hora,  com  o  gravador  ligado encostado  entre  as  grades.  No outro  dia,  a  matéria  foi  ao  ar  e bateu  recorde  de  audiência.  Provocou  um  enorme  frisson, principalmente  na  esfera  patronal.  A Belgo-Mineira queria  o mesmo  espaço  na  emissora.

*Do Livro A Saga: Memórias de um Jornalista do Interior” – Parte X

Autoria: Jornalista Marcelo M. Melo!

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