Acima, esta foto histórica – cujo autor não me lembro mais -, no momento em que uma multidão – entre operários e familiares – fizeram um corredor na passarela do Vestiário Central (Portaria do Zebrão), aguardando a saída dos metalúrgicos que durante 23 dias ficaram dentro da Usina, mantendo o movimento grevista
A greve dos metalúrgicos ainda era uma incógnita. Sem perspectivas de chegar ao fim. Logo depois que a entrevista de Leonardo e Ramos foi ao ar pela Tiradentes, a greve ganhou novo capítulo. Na manhã seguinte, estava eu na sala de Elmar, que estava ausente. O telefone toca e eu atendo. Do outro lado da linha uma voz em tom ríspido: – “Quero falar com o gerente. Respondi que ele não se encontrava naquele momento e me apresentei como responsável pela área de jornalismo da emissora. – “Então estu falando com a pessoa certa. Quero falar é com você mesmo”, disse em tom arrogante. Apresentou-se como editor de Jornalismo da Globo/Rio e começou a me questionar o motivo pelo qual estava concedendo espaço maior ao Sindicato, em relação aos noticiários da greve. Na realidade, a direção da Belgo Mineira havia reclamado com o nosso diretor em Belo Horizonte, João Veras, de que a empresa não estava sendo ouvida. Tudo motivado pela entrevista que tinha ido ao ar. Rebati, afirmando que todos os boletins que eram encaminhados pela empresa iam também ao ar. Ao longo da conversa, os ânimos se amainaram e um certo grau de empatia pode se observar de nossas partes. Era apenas o começo do começo. Enquanto a cidade sofria com os efeitos da paralisação – que já durava mais de duas semanas -, com esposas e filhos pequenos nas casas à espera dos maridos, que continuavam dentro da Usina, as vendas no comércio caindo drasticamente e o moral de todos bastante abalados, a imprensa escrita e falada se tornava a guardiã e o elo entre a comunidade e os grevistas. A nossa responsabilidade era muito maior do que poderíamos imaginar. Tínhamos um compromisso enorme com toda a população e teríamos de ser o mais imparciais e éticos possíveis.
Na manhã seguinte, chego à emissora e encontro uma ordem: deveria ir até o escritório da Usina para fazer uma entrevista com o gerente, Alonso Starling. Lá chegando, encontrava-se também assessor de Comunicação da Belgo-Mineira, Álvaro Saldanha Machado. Fomos dali até o prédio da gerência e, para minha surpresa, uma folha contendo as perguntas que teria de fazer. Não estava acostumado com aquele tipo de entrevista, ou seja, eu não ter controle sobre o meu papel de repórter. Alonso disse que poderia ficar à vontade para fazer outras perguntas. E para fechar aquele cenário , me senti um pouco constrangido por haver uma mala preta na sala. Mas fiz meu papel, obviamente, e após a entrevista disse que não aceitaria nenhuma “ajuda” por fora. – “Estou fazendo um trabalho normal e já recebo por isto, como funcionário da emissora de rádio”, afirmei. Tentaram insistir, mas mantive minha posição, que naquele momento foi respeitada. A entrevista iria ao ar na tarde do mesmo dia. Toda a situação me deixou frustrado como profissional. Afinal, apenas representei um papel de repórter. Não foi necessário criar. No ar estava um jornalista/ator, atônito, com vontade de largar tudo. Chutar o pau da barraca, literalmente. Final de expediente e volto para casa. Entre um copo de cerveja e outro, pensava no assunto. Contudo, minha consciência estava tranquila pelo fato de não ter aceitado a oferta.
A greve continuava e eu no meu papel de repórter, tanto na emissora quanto na mídia impressa. Continuava acompanhando o movimento que, aos poucos, se enfraquecia. Também a empresa jogava pesado e, dentro de sua campanha de mídia, tentava mostrar à opinião pública que a greve tinha mais interesses políticos do que propostas por melhorias salariais à categoria, já que João Paulo sairia candidato a deputado federal naquele ano e estaria usando o movimento para crescer perante a opinião pública. E havia uma verdade nisto (sic). Por outro lado, a força do Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade era um fato, e a entidade era uma referência em nível nacional junto ao ABC paulista. E tal conquista somente foi possível também graças ao trabalho desenvolvido pelo próprio João Paulo que, quando assumiu a presidência da entidade, em 1 974, e mudou a história sindical em Monlevade e conseguiu formar um grupo forte e combativo contra o poder patronal.
Ficou a lembrança do “Acampamento dos Anjos”!
Voltando a falar sobre o movimento, alguns operários que começaram dentro da Usina já haviam retornado às suas casas. Muitos, por pressão da família, principalmente das mães, esposas e filhos. Entre algumas ocorrências incomuns, registradas no interior da Belgo-Mineira, pressões também de cima para baixo, ou seja, da direção da empresa, que queria a todo custo colocar fim naquela paralisação. Numa daquelas madrugadas vividas pelos grevistas, a alta cúpula tentou montar um esquema para acabar de vez com o que chamavam de invasão. Armaram uma guerra psicológica. Foi autorizada a entrada de um ônibus dentro da Usina: nele estavam policiais à paisana e seguranças particulares, todos vindos de Belo Horizonte, que tinham como objetivo tumultuar o movimento e provocar um fato que abalasse o moral dos grevistas, já enfraquecidos diante de tantos dias vividos ali como se fossem “prisioneiros”, sem ver suas famílias, seus amigos e sem o convívio social. Entretanto, os líderes da greve conseguiram evitar o pior, e a estratégia tentada pela empresa foi neutralizada. No entanto, faltou muito pouco para que uma tragédia ocorresse ali naquela madrugada. A opinião pública, ao receber pela Rádio “Tiradentes/Globo” as informações do ocorrido, repudiou a ação da empresa. O clima era de mais desconfiança e medo. O fim do movimento já estaria ali anunciado. Até porque não havia mais sustentação física e psicológica. Existiam informações de que grande parte dos operários que havia iniciado a greve já estava em suas casas. E, após ação judicial impetrada pela Belgo-Mineira, a Justiça concedeu uma liminar à empresa, deferindo um pedido de desocupação da fábrica. Os operários teriam de deixar a Usina às 8 horas da manhã daquele fatídico dia 8 de agosto de 1986. Um clima de guerra havia se instalado em frente à Portaria do Zebrão e policiais militares lotados nos batalhões de João Monlevade e Ipatinga – para se fazer cumprir a determinação judicial -, já teriam recebido ordem de invadir a Usina, caso os grevistas não fizessem a desocupação. O relógio marcava 8 horas, e os militares começavam a entrar pela Portaria-3. Agindo com responsabilidade e tentando evitar um confronto com a Polícia, as lideranças do movimento determinaram a desocupação. Enquanto os militares preparavam a invasão, os grevistas saíam pelas portas do Vestiário Central. Aquela ordem da diretoria do Sindicato, com certeza, evitou o que poderia tornar-se uma tragédia em nossa história. Os metalúrgicos que aderiram ao movimento deixaram a Usina da Belgo-Mineira como “heróis”. Saíram dali com o sentimento do dever cumprido – mesmo não sendo atendidos na maior parte de suas reivindicações -, e foram recebidos por uma multidão de familiares e companheiros, que os aguardavam fora da Usina.
Ficava, pois, a certeza, de que aquele movimento não teria sido em vão. Deixavam para trás toda a história vivida naqueles longos dias dentro da Usina, entre eles um espaço que ficou famoso, onde havia uma panela de aço enorme, deitada, e que ficou conhecida como “Acampamento dos Anjos”: o local era usado pelos líderes do movimento grevista, Leonardo Diniz e Antônio Ramos, para reuniões onde eram traçadas as estratégias do dia-a-dia, e também se transformou no QG de descanso durante a noite, cuja entrada era coberta por uma improvisada cortina de pano. O nome – “Acampamento dos Anjos” – era quase plágio de um pequeno bairro localizado próximo ao Jacuí e que foi morada de vários operários entre os anos 1950 e 1960, e que se chamava “Acampamento do Ângelo”, devido ao proprietário do loteamento que deu nome ao lugar. Mas, como é tradição no meio católico, quando às 18 horas se reza a “Hora do Angelus”, até os dias de hoje se confundem o nome e a sua origem. Sabe-se, entretanto, que durante a greve, aquela panela de aço foi um marco e símbolo da luta dos operários metalúrgicos.
Foram 23 dias de greve, 184 horas paradas dentro da Usina, durante as quais o dinheiro deixou de circular na cidade. Para piorar, a empresa decidira descontar, de julho a dezembro do mesmo ano, 50% do período em que os operários ficaram de braços cruzados, descontadas mensalmente nos seus salários. O restante seria descontado em 1987. Para a categoria, no entanto, valeu toda a luta e enfrentamento. Como diria o dirigente sindical Antônio Ramos, em entrevista que me concedeu 12 anos depois, em novembro de 1998, para o jornal “Gazeta regional”, “tivemos sequelas pesadas durante os 23 dias ali dentro da Usina. Eu mesmo desci a passarela do Zebrão chorando. O pessoal não conseguia mais ficar lá dentro. Foram 23 dias de sufoco e muito sofrimento. A pressão era muito grande por parte da Belgo-Mineira. Naquela greve; a nossa intenção era colocar todo mundo para dentro da Usina, inclusive as mulheres e os filhos, mas não foi possível. Havia colegas desesperados lá dentro e os que não suportavam mais deixavam a Usina. Mas foi uma causa justa”.
Abaixo, os operários deixando a usina após a greve

Quase 3 décadas depois, professora deixa seu depoimento!
Por sua vez, a professora Celeste Semião de Oliveira, primeira candidata a prefeita pelo Partidos dos Trabalhadores, em João Monlevade, nas eleições municipais de 1982, que foi uma das coordenadoras do QG montado em frente à Portaria do Zebrão para dar apoio aos grevistas, fez um depoimento sobre aquele movimento cujo registro vale a pena. A postagem foi feita na rede social do Facebook, em maio de 2013, quando já estava escrevendo estas memórias, e bateu forte. Para ela, foi um momento que marcou a solidariedade do povo monlevadense, que segue abaixo, na íntegra:
“Leonardo foi a principal liderança da greve de 86. Foram 23 dias dentro da Usina. Leonardo e Ramos lideravam a turma da resistência dentro da fábrica, sem sair pra nada. O Movimento das Mulheres de João Monlevade, junto com a turma de grevistas do lado de fora, comandava uma cozinha que dava conta das refeições para os trabalhadores em greve. Essa situação comoveu toda a região em torno de João Monlevade. Veio um sitiante e trouxe uma caminhonete cheia de laranjas. Outro trouxe batatas, arroz, feijão, mandioca. Os comerciantes de Carneirinhos trouxeram carne, toucinho, óleo, água. Foi uma guerra braba, mas a solidariedade do povo de Monlevade tornou-a inesquecível e bonita. O padre Renato celebrou muitas missas num altar improvisado na porta do Zebrão. Os grevistas de dentro assistiram pelas grades em volta da Usina. A gente pelejava e rezava. E teve de tudo: ameaças, água cortada, tropa da polícia para invadir de madrugada (não sei como os sindicalistas ficaram sabendo antes, tomaram providências e a tropa que veio de BH teve que voltar). Pesce cortava legumes com um cortador inox. Terezinha Mariano, cozinheira de mão cheia, era a cheff. Creusa e Leo a substituíam quando necessário e estavam sempre presentes. E havia muita gente ajudando, tanto mulheres quanto trabalhadores.
No dia em que a greve foi encerrada e os sindicalistas deixaram a Usina, receberam um diploma de “herói” porque foi verdadeiro ato de heroísmo a resistência dentro da Usina. Leonardo e Ramos, dois heróis de verdade”. In Memorian: Antônio Ramos faleceu em 1999 e Leonardo Diniz em 2000.
*Do Livro A Saga: Memórias de um Jornalista do Interior” – Parte XI
Autoria: Jornalista Marcelo M. Melo!