Vista parcial do Centro Industrial, com destaque para a Matriz São José Operário (Foto: Sérgio Henrique)
Nem havia ainda chegado o dia de vir ao mundo. Mas dentro de um ventre estava inquieto, como se querendo romper as barreiras naturais do parto e surgir em dias. Mas a calma de minha mãe era paciente e sua barriga crescia, como qualquer negra ou branca, prenha. E surgia na casa de alpendre vermelho, de azul nas janelas, mais um arrebento cujo cordão era cortado pela parteira, que subia do Areia Preta até a velha Vila Tanque. Comunhões eram oficializadas e se tornavam sagradas.
Era manhã quando, pela vez primeira, entrei em uma lotação que descia a Contorno, cujo ponto era um pedaço de madeira, com letras verticais onde se lia “Ponto”. Nem conhecia bem as palavras! E, de mãos dadas com minha mãe, sempre paciente, descíamos para a feira, atrás do Geo, de frente para o seu morro. Afinal, tratavam-no como “Morro do Geo”. Era o proprietário. Vislumbrei-me com aquela correria, desde a subida, como se estivesse entrando em terras estranhas. Uma rua onde funcionava um enorme mercado. Novo para entender aquilo tudo, minha mãe relatava a sua história e contava os causos dos personagens daquele enorme conglomerado de gente. E de cada porta por onde entravam e saiam tantas pessoas… Cresci com aquilo ao meu redor. E vivi cada manhã, semanalmente, desde a lotação que passava em frente à minha casa de alpendre vermelhão, subindo os degraus do coletivo – já sem as mãos dadas com minha mãe – até descer no “Ponto” da Leiteria.
Chegava e já era dia. Entrava por aquele imenso mercado. Quase todos caminhavam pela rua de calçamento. O passeio era pouco usado. Também, trânsito ali era coisa que não preocupava muito. Podíamos atravessar sem muita pressa e sem medo, da Farmácia de Seu Juventino Caldeira até o outro lado, na Cobal. Bom parar ali e prosear com ele, o farmacêutico/político. Sempre sorridente. E o “Sô” José Braz, da famosa Casa Braz. Ou ainda as Casas Maluf, da simpática Dona Farid. Tudo levava o nome de “Casa”, ou o singular no plural, como a Casa Jaime. Ah, e as Casas Lotéricas, do JG. Para um pouco variar, o Bar Primavera. Mas nada que fugisse à regra. Afinal, ainda faziam parte do Complexo a Casa do Pescador e a Casa do “João Gordo”. Será que era falta de criatividade ou costume mesmo? Uma cidade começando a surgir dentro das montanhas de Minas e em sua pacata Vila Operária o “quanto mais simples, melhor”… Talvez explicasse tantos homônimos…
Havia ainda o “andar de cima”, da granja e da Delegacia de Polícia. E sempre alerta o Soldado Paixão. Tudo mágico, como o caixeiro viajante que ficava na entrada, à direita do Mercado. Pertinho dali um artista, o “anfitrião” da praça, Seu Enéias, vendedor de amendoins, que atraia os fregueses tocando a sua flauta transversal, doce, como fazendo poesia. Negro, altivo e bonito. Simples.
Praça do Mercado, o meu caminho desde os tempos das matinês no Cine Monlevade. Domingos, às 10 da manhã, assistindo o mascarado Zorro e à “dupla dinâmica”, Batman e Robin. Nem imaginávamos, em nossa infância e ingenuidade, que ali já se prenunciava uma relação entre pessoas do mesmo sexo. E nem que o simples ato de levar pipoca para dentro do escuro do cinema já fazia parte de outro enredo. Duca Pinduca, o “ladrão de açúcar”. Geraldo Moleza conduzindo sua lotação, que saia da praça – em frente à Assistência Médica -, até a velha Vila. Entre a arquitetura em estilo neo-clássico. Do banheiro público à farmácia de Seu Vicente. E as ruas brotadas pelas origens indígenas da Tupis, Tabajaras, Guaranis… E a Cidade Alta!
Mas eis que o dia desaparece e a noite me pega de surpresa. Os anos 1980 ficariam marcados para sempre como a “Década da Destruição”. Do Grêmio ao Ideal dos ideais progressistas. Do União Operário e do Bar do Bené, do Bar de Seu Simões e do Bar para Todos. Pois todos éramos nós, que perderíamos a nossa identidade e a nossa cidadania como cidadãos de uma cidade.
E também a minha mãe, Dona Geralda, que viajou e se juntou às estrelas. Mas deixou como herança a sua sabedoria e a sua força. E a sua fé. Entre a Praça do Mercado até o Morro do Geo. Parada na Praça do Cinema, quase em frente à Portaria-1 da Usina da Belgo-Mineira. Tudo sucumbiu. E sem projetos, perdemos a ilusão do exemplo da Ave Fênix. Pois nada ressurgirá das cinzas.
*Crônica que fiz e saiu vencedora no Concurso Literário promovido pela Prefeitura Municipal de João Monlevade, no ano de 2011.