Comissão dos Esfarrapados! *Afonso Torres

Alberto Lima, o mais entusiasta pela emancipação de João Monlevade

Acostumado a abrir estradas, profissão que aprendera com o pai, Virgílio Lima, Alberto Pereira Lima era o mais entusiasmado membro da Comissão de Emancipação de Monlevade. Quando obstruiam um dos caminhos tão meticulosamente traçados, lá estava ele convocando a turma para mais uma reunião no Bar Santo Antônio, estimulando os companheiros a prosseguir lutando contra as intrigas, tramoias e sabotagens armadas nos bastidores da Assembleia Legislativa de Minas Gerais pelas velhas raposas políticas, membros dos dois mais fortes partidos da época – PSD e UDN – que, quase que abertamente, preferiam ignorar o desejo de emancipação da população de Monlevade. Temerosos de perder a parcela mais importante de sua arrecadação de impostos, pagos pela CSBM, alguns habitantes da cidade de Rio Piracicaba se esmeravam na criação de entraves que iam postergando o acalentado sonho monlevadense. Não que isso fosse novidade, já agiam assim desde os tempos em que as lideranças políticas de Carneirinhos, ainda inexperientes, se mobilizaram e conseguiram eleger vereadores para atuar na Câmara de Piracicaba, imaginando que por esse caminho chegariam a obter benefícios, votando uma lei que obrigasse a Prefeitura de Piracicaba a aplicar parte da arrecadação no povoado que vivia sem água encanada, fornecimento de energia elétrica, calçamento de ruas e sem escolas para seus filhos.

 Foram oito anos de inviabilidades. A cada estratégia, um obstáculo. Até mesmo vereadores eleitos por Monlevade se opunham à emancipação, quando muito, apoiavam a tese da criação de uma subprefeitura. Sempre que o assunto entrava em pauta, para não votar, saíam em plena seção da Câmara. Tudo era muito difícil, exigindo paciência e jogo de cintura. Um dia, cansados de assistirem os caminhos mais curtos serem obstruídos, decidiram que a melhor opção seria partir pro tudo ou nada: a luta agora seria pela total emancipação do distrito. “Se é pra ficar nos sonhos, vamos então sonhar alto: vamos pr’um corpo a corpo nos corredores da Assembleia Legislativa buscar apoio dos deputados estaduais!” Decretou, determinado, o Alberto Lima e, assim, tiveram início as desconfortáveis viagens à Belo Horizonte que, quando o tempo colaborava, podia chegar a seis horas. Como o dinheiro, tirado do próprio bolso, nem sempre era suficiente para cobrir as despesas, quem não podia ou não queria ir, ajudava a arcar. “Tudo por amor a uma causa!”, diziam os que colaboravam àqueles que, descrentes, diziam que “aquela turma ia pra Capital era mesmo pra farrear com o dinheiro dos outros, isso sim!” Com dinheiro curto pra viagem, imagine pra terno e gravata!… Iam mesmo era em “manga de camisa” pra Assembleia e, por isso, ganharam dos adversários o apelido de “Comissão dos Esfarrapados”.

 Sempre que se fazia necessário, partiam para Belo Horizonte e ficavam por lá o tempo que fosse preciso, conversando com um e com outro, elaborando o tortuoso caminho da emancipação. Como se tornou lugar comum o “desaparecimento” de toda documentação por eles levada, longe de desistirem, combinaram com o Deputado Antônio Carvalho que passariam a levar duas versões da mesma documentação: uma para desaparecer nas mãos dos adversários e outra para seguir os trâmites da Casa. Enquanto os “Esfarrapados” fazia seu trabalho junto aos deputados, o vereador Benedito Marcelino, eleito pelo distrito, tentou uma saída: apresentou um projeto de lei na Câmara de Piracicaba propondo a emancipação, mas, como era de se esperar, foi rejeitado. Foi quando surgiu um movimento para unir Monlevade e Bela Vista de Minas em um só município, o que incluiria, assim, uma grande jazida mineral – a Mina do Andrade – e a Usina Siderúrgica da Belgo-Mineira. Novamente rejeitaram.

 Em fevereiro de 1963, quando tiveram início os trabalhos do novo ano legislativo e parecia que o Governador Magalhães Pinto iria sancionar a lei de emancipação, veio o veto. Alberto Lima, já mais experiente e conhecido, convidou o Vice- Governador, Clóvis salgado, para fazer uma visita a Carneirinhos. Seria um caminho para ele demonstrar que o distrito tinha condições de ser autônomo e que contavam com a aquiescência da Belgo-Mineira. Durante a visita, um meticuloso relatório lhe foi entregue para que, com mais tempo e cuidado, pudesse avaliar a questão. No dia 30 de abril, Clóvis Salgado enviou a Germim Loureiro, Presidente da Comissão, uma carta agradecendo a acolhida e anunciando que, em conversa com o Governador, ele prometera, ainda para 1963, a assinatura da emancipação. Os ânimos se acenderam e seguiram, sem poupar esforços, pelos corredores da Assembleia, buscando unir forças políticas para alcançar o intento. Se, como pudera comprovar o Vice- Governador, havia uma cidade de fato, urgia fazê-la de direito. Final de 1963, véspera de “reviellon”, um novo veto do Governador alegando “razões de segurança nacional” – porque os distritos de Ipatinga, Timóteo, Bela Vista de Minas e João Monlevade sediavam empresas de siderurgia e as comunidades dependiam dessas empresas – revolta e entristece os moradores. O mais exaltado era o Bio que, com a carta do Vice nas mãos, entre outras coisas, chamava o Governador de “homem sem palavra” e a prova estava ali pra quem quisesse ver…

 Quando o Deputado Antônio Carvalho, que apoiava a causa, perdeu o mandato, o jovem deputado, recém eleito pelo antigo PSP, Paulino Cícero empunhou a bandeira da autonomia de João Monlevade. Já fora prefeito de São Domingos do Prata por duas vezes e desenvolvera uma boa amizade com o Padre João Batista Gomes Neto, um dos principais articuladores da luta dos monlevadenses. Convidado pelo Governador Magalhães Pinto para um almoço no Palácio da Liberdade, Paulino Cícero, que era da oposição, se preparou para aproveitar a ocasião e ver se conseguia abordar o assunto com quem poderia defini-lo. Sabia que aquele evento fazia parte de uma estratégia de aproximação política geral no Estado, portanto o Governador estaria mais aberto a conversações. Conversa vai, conversa vem, a certa altura, o Governador lançou uma pergunta: “-Como está minha situação política em sua região?” Era a tão aguardada deixa, Paulino Cícero não poderia se dar ao luxo de perdê-la então respondeu: “Veja bem, Sr. Governador, nós não temos sido bons parceiros políticos, mas há duas coisas que o senhor poderia fazer por aquela região que, sem dúvida alguma, projetariam seu nome ao patamar de um Juscelino Kubitschek no que tange ao respeito e alta estima.” Para valorizar a sua fala, fez uma pausa, dando tempo ao Governado que, curioso, perguntou; “E quais seriam estas duas medidas que eu deveria tomar?” “- A primeira, excelência, seria o senhor concluir, rapidamente, a MG-4 – atual BR-381 – O pessoal da região viaja muito. São engenheiros, médicos e técnicos que vieram de outras regiões e estão todos, de lá pra cá, passando por cima de poeira e lama a xingar a mãe do governador como se xinga mãe de juiz de futebol. Não entendem como que empresas como a Usiminas e Acesita ainda podem trabalhar sem ter uma ligação com a malha asfáltica do Estado.” Respondeu o jovem e astuto deputado. “-Quanto a isso, já estou em entendimento com o Elizeu Rezende, Diretor do DER e ele já está em providenciando um empréstimo junto ao Banco Mundial. Até o término de meu mandato deixarei esta obra totalmente concluída. E a outra medida que pode melhorar minha imagem, qual é?” Se interessou o Governador e Paulino Cícero satisfez: “Ah, Governador, esta não vai lhe custar um centavo sequer dos cofres do estado!… Para realiza-la basta o senhor, o mais breve possível, determinar que seja derrubado o veto que o senhor apôs à emancipação de Monlevade, Bela Vista de Minas, Timóteo e Ipatinga…” Como que houvesse sido previamente combinado, Geraldo Quintão, deputado pela UDN, prestou um apoio inesperado com o qual Paulino não contava: interrompendo a conversa se dirigiu ao Governador e falou que o Paulino estava absolutamente certo e “se ele falou como homem de oposição ao seu governo, falo eu como homem de seu time na Assembleia Legislativa. É, realmente, fundamental permitir a emancipação desses lugares e o único processo para tornar isso viável é o senhor instruir o seu líder para derrubar o seu veto. ”Como se o fruto estivesse, enfim maduro, a decisão do Governador foi surpreendentemente rápida: “ – Vou, então, avisar ao Ataliba Mendes para que mande colocar em pauta o meu veto e autorizar a bancada a derruba-lo”.

 Só que a batalha ainda não estava ganha. O pessoal de Rio Piracicaba, liderada por um padre de lá, visitou deputado por deputado, articulando uma oposição junto ao Deputado Hugo Aguiar, do PSD, pra votar contra a emancipação de Monlevade, tanto que, enquanto a emancipação dos outros municípios foi tranquila, a de Monlevade só alcançou a sua com muita dificuldade, pela diferença de um voto apenas. Assim, em 29 de abril de 1964, ainda aturdida por uma das primeiras manifestações do movimento militar de 1964 que foi a intervenção decretada no Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade, tendo por resultado a prisão de vários dirigentes e a queima dos arquivos que guardavam a história de suas lutas, a população de Monlevade sobrepujou o medo e, com muita alegria, viu o Governador Magalhães Pinto sancionar a lei de emancipação político-administrativa do município. A “Comissão dos Esfarrapados”, após oito anos de luta, saía vitoriosa de uma campanha que enfrentou comodismos, sabotagens e intrigas.

 Na casa de Alberto Lima, na Rua do Correio, a alegria contagiou até ao “Coronel”, o cachorro da casa, que mesmo sem ter conhecimento do que estava acontecendo, latia, pulava, correndo de um lado pra outro, abanando efusivamente o rabo, pedindo atenção. Dª Yolanda se recolhera junto ao oratório com seus santos de devoção para agradecer a realização do sonho do marido. Como em toda casa mineira que se preze, todos acabaram em volta da mesa da cozinha. A ocasião pedia uma boa comida, mesa farta. Com os Lima era sempre assim… Agora que acabara o perrengue das constantes ausências do marido, Dª Yolanda queria todos ao seu redor, comemorando, rindo, contando causos, relembrando fatos que culminaram naquela euforia toda. A certa altura, deram com Alberto Lima rindo sozinho, por trás da fumaça de seu Luiz XV sempre aceso entre os dedos. Curiosos, todos quiseram saber “que bicho lhe mordera” e ele, prontamente esclareceu: “ –Estava aqui me lembrando da visita do Clóvis Salgado… Vocês se lembram?!… Eu lá, mostrando que as ruas tinham nome, as casas numeradas, o comércio organizado podia atender a população, quando, de repente, sinto um violento esbarrão!…” “Ora, Alberto, e quem é que poderia esquecer daquilo, homem de Deus!…” falou Dª Yolanda já fazendo coro às gargalhadas do marido. “Só não sei qual das meninas estava na bicicleta, mas me lembro bem, como se fosse ontem, do desespero das outras correndo atrás da irmã que ia se sacolejando pela a rua afora, sobre o selim, a mão firme no guidon, os olhos esbugalhados, gritando que perdera o freio da Monark!…” “-Também nunca vi aprendiz sair pela rua em dia de movimento!…” Zombou uma das filhas, ao que outra emendou: “-Olha só quem ‘tá falando!… Até parece que, toda vez que papai viajava, você não saia por aí “praticando”!…” E todos começaram a rir e falar ao mesmo tempo, dificultando o entendimento. Foi mesmo o Alberto Lima que retomou a frente da conversa: “Coitado do Clóvis Salgado!… Não entendeu nada quando me viu sendo atropelado por uma de minhas filhas e, em vez de ralhar, após o primeiro susto, começar a rir… Sem falar da tosse que se seguiu em consequência do engasgo!…” “-Acho que não foi só ele não!… Todos ali ficaram sem entender nada!… Eu mesmo que estava um pouco distante e corri pra acudir, até hoje não sei o porquê daquela sua atitude…” Falou Randolfo, amigo e motorista de todas as viagens e embates na Assembleia. “Ora, Randolfo, não é possível que você tenha se esquecido, companheiro!… Tenho quase certeza absoluta que comentei com você o que se passou pela minha cabeça naquela hora!…” Fez uma pausa e, vendo que só poderia estar enganado, se dispôs a esclarecer: “É que eu fiquei imaginando, talvez pelo nervoso da situação, que se o Sr. Governador tivesse vindo junto com o Vice e fosse ele o “atropelado” por aquela bicicleta que, àquela altura, já não estava nas melhores de suas condições, pensa comigo: baixinho, de costas, vem o pneu da bicicleta e se encaixa, violentamente, bem no meio de suas pernas, o para-lamas ia parar direto onde você esta pensando, não ia?!… Pois então, o Dr. José de Magalhães Pinto, com certeza, ia voltar pro Palácio com o “sobrenome” bem danificado!… Ia ou não ia”!

*Afonso Torres é escritor, historiador e colaborador do jornal “Morro do Geo”!

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