A Praça do Cinema! *Stanley Baptista de Oliveira

Saudosa Praça Ayres Quaresma, que ficou famosa como “Praça do Cinema”

Há muitos anos, há mais de vinte, indo para o serviço, passo por todos os dias pela Praça Ayres Quaresma, a “praça do Cinema”. É uma praça quadrada; de um lado fica o imponente prédio do Colégio Estadual e, do outro, o chamado prédio do cinema que, na realidade, tem muito mais do que o Cine Monlevade. É um verdadeiro centro comercial. Só que, agora, tudo está fechado, abandonado, vias de ser demolido. Resiste, ainda funcionando, naquela praça, apenas o Colégio. A devolução é iminente e necessária, para atender as exigências do progresso, o programa de ampliação da Usina da Belgo-Mineira, mas não deixa de causar um aperto no coração ver aquelas instalações, aquelas lojas, todo aquele prédio que já teve tanta vida, tanto movimento, em vias de ser destruído.

A lembrança de tempos passados, refletindo tantos anos em que atravessei, diariamente, aquela praça, vem à minha mente. Ouço vozes, sons, ruídos que não existem mais, revejo pessoas que povoaram aquele conjunto, pessoas que já morreram ou já se mudaram para outros lugares. Vejo “seu” Nerval (cujo nome era Enerval), magro, sempre bem arrumadinho, de terno e gravata, sorridente, na portaria ou na bilheteria do Cine Monlevade. Revejo meus filhos pequenos, na matinê das 10, aos domingos. Gritaria dentro do cinema. Balas. Pipoca.

O belo Cine Monlevade em seu interior

Na esquina, o Bar Para Todos, de uma só porta, onde só cabiam dois fregueses ao mesmo tempo, apesar do nome. Foto Diló. Lá está o mestre Diló com sua Roleyflex, sua cabine para retratos 3 x 4, sua simpatia, agitado, querendo atender bem, ao mesmo tempo, todos os clientes. Ao lado do Foto Diló, o Bar do Bené, que já teve vários donos e vários nomes, mas, ao mesmo tempo em que eu freqüentava, para um café com pão de queijo, o dono era o Bené do Bar. Enquanto eu tomava o cafezinho, à tarde, havia o papo rápido com o Jairo Dentista (que era meio surdo e só falava aos berros0 e a cena diária que eu, deliciado e escondido, assistia: uma professora, bem gordinha, sempre fazendo dieta para emagrecer, na hora do recreio do Colégio Estadual, atravessava a praça, entrava no bar e comprava duas cocadas (de coco queimado) e um pé-de-moleque, dos grandes. Jogava tudo dentro de sua bolsa preta para comer depois, às escondidas. Eu ficava rindo, vendo os deslizes que ela cometia na dieta que eu, sem colher resultados, lhe receitava. No Bar do Bené tinha, também, o Dudu, um velho magrelinho, com barbicha, sempre alegre e falando embolado, esperando a gorjeta para tomar mais uma dose de pinga.

O famoso “Bar para Todos”

No andar de cima do cinema, o Clube Ideal freqüentado pela alta sociedade de Monlevade, naquele tempo encontrada na região perto da Usina (ruas Siderúrgica, Piracicaba, Beira-Rio, Tieté). Ingênuo, médico recém-chegado à cidade, eu esperava algum dia ser convidado para freqüentar o clube, tornar-me sócio. Estou esperando até hoje. Até hoje, não. Até o dia em que o clube cerrou as portas, morreu, condenado à demo lição.

Mais no canto da praça, depois do Foto Diló, descendo escadas, o Clube União Operária, sempre discreto e bem comportado, em cuja porta a moçada paquerava as domésticas e moreninhas, material da mais alta qualidade. Depois do União, bem no canto, havia uma coisa própria de cidade européia: um mictório público! Em cujo mictório, numa noite de Natal, uma pessoa, depois de satisfazer suas necessidades,  – ninguém sabe por quê – sacou o revólver e deu seis tiros nas demais pessoas que lá estavam: uma delas morreu, outro ficou paralítico da cintura para baixo. Não me recordo se ele suicidou em seguida, com um tiro no ouvido, o que seria tragédia demais para uma noite de Natal numa praça tão alegre e pacífica. A alegria, como até hoje, era mantida pela garotada risonha e barulhenta do Colégio Estadual.

Saio da praça e sigo em direção à Portaria 1 da Usina, andando pela galeria do cinema. Logo de cara, havia a Escola de Corte e Costura, ao lado do cinema, aos cuidados de Dona Anita Michalick. As mocinhas prendadas, alunas de D. Anita, flertando com os incautos passantes, esperavam, à porta, o início das aulas. Agora, a porta está fechada, a escola acabou. Aquelas mocinhas de então transformaram-se em gordas matronas, cheias de filhos e varizes.

A passagem para a famosa Portaria-1 da Usina

Sigo pela velha galeria, cada dia mais suja e abandonada. As paredes estão emporcalhadas com retratos de esperançosos políticos, candidatos de eleições passadas. O teto está cheio de teia de aranha e pucumã, o chão com vômitos dos bêbados da noite passada, com seu cheiro azedo e enjoativo. Passo diante do portão de entrada da Rádio Cultura, que ficava no andar superior, onde brilhava o Coronel Gavião. Ao lado do estúdio e do barulhento auditório, numa convivência pacífica, mas muito esquisita, ficava o consultório do Dr. Jairo Dentista, onde eu sofria a tortura do motor, dos ferinhos, das injeções de anestesia, curtindo o som que vinha do toca-discos da rádio. Música caipira, Beatles. Agora o portão está fechado e não mais existe a Rádio Cultura, com o locutor lendo notícias do “Estado de Minas” e dizendo “conforme mostra a foto acima” ao final do noticiário; o Jairo dentista já se mudou para Belo Horizonte, tudo é silêncio, chão sujo de poeira, móveis quebrados empilhados na escada.

Subo dois degraus na galeria e passo, agora, diante do Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais, depois do Banco Nacional. Lá está “seu” Macedo, o gerente muito magro, cadavérico, fumando um cigarro atrás do outro, atendendo um cliente. No caixa está o Lincoln, vulgo “Don Toco”, gordo, vermelhão, suando muito. No balcão está o Zé Cláudio, muito educado e atencioso, vendendo fundos de investimento, “que primeiro vão lá embaixo, dão um suspiro para depois subir de novo”, tentando acalmar os que perderam dinheiro com esse interminável suspiro. O Banco não mais existe, “seu” Macedo e Lincoln já morreram, tudo está fechado pela pesada porta de aço. Também fechada está a agência dos Correios, onde revejo as duas simpáticas velhinhas no balcão, sempre muito lentas no atendimento e que nunca tinham troco. Às vezes, nem selos.

Depois dos Correios, vinha o ponto mais alegre e divertido daquele centro comercial: a Farmácia do Vicente! Lá, de pé, junto ao balcão, está meu velho amigo Vicente de Paula Neves, talvez o melhor amigo que tive em Monlevade, fumando sem parar, agora usando uma piteira com um filtro sensacional que, segundo ele, cercava toda a nicotina e alcatrão do cigarro. Eu não resisto. Entro na farmácia para um papo, ouvir as últimas piadas, a mais nova fofoca da cidade, rir com as gozações e brincadeiras do Vicente. Mas é pura imaginação, só lembranças do passado. Não existe mais a farmácia, que fechou, nem meu grande amigo Vicente, que morreu de câncer no pulmão provocado pelos cigarros que fumava, apesar de sua “sensacional” piteira com filtro.

No fundo do prédio, por uma porta estreita, subindo uma escada escura, também estreita, chegava-se ao consultório do Olavo Dentista. Eu gostava de estacionar o meu carro bem em frente a esta porta, fechando completamente a passagem, impedindo a entrada e saída de clientes do Olavo. Pura brincadeira de amigos. Como todo o resto, já não existe o consultório, e o Dr. Olavo continua dentista, felizmente vivo, mas trabalhando em outro local. Em Carneirinhos.

Revejo mais uma vez o antigo Centro Comercial. Tudo fechado e abandonado. Tudo acabado, prestes a ser demolido, apagado. Ficará, como diz o poeta, apenas uma lembrança na parede, mas como dói…

Permanecerão, enquanto eu ver, lembranças alegres daquelas pessoas e coisas que deram vida à famosa “praça do Cinema”, pessoas que já se foram, já se mudaram e coisas que envelheceram, perderam a finalidade, acabaram. Sentirei saudades e lembranças mais das pessoas que das coisas. Lembranças e saudades que não serão demolidas, jamais.

Os famosos arcos da saudosa “Praça do Cinema” e ao fundo o formoso prédio do Colégio Estadual, que ainda resta para contar a história

*Stanley Baptista de Oliveira é médico, escritor, cronista e colaborador do jornal “Morro do Geo”!

Esta Crônica foi escrita em abril de 1988, ano em que a Praça do Cinema foi demolida.

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