Dia de Procissão! *Coramar Alves

No mais alto da noite calorenta, quando o primeiro sopro da aurora chegou com o vento, por um par de horas, fiquei na varanda a olhar a terra-amada adormecida. Meus pensamentos soltos voaram como telegramas de saudades. Ah; inesquecíveis horas loucas da mocidade… Falou o alegre e vermelho coração. Quantas Histórias deliciosas vividas nesta bela e rica terra-natal. Felizes quem as tem.

Nasci numa cidade de ferro, de coração de ouro, com um promissor futuro. Rica, mas sóbria como um Templo Grego. Construída e amparada pela inolvidável precursora Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, com seus gigantes pioneiros, homens de aço, que aqui chegaram desde o ano de 1935. Minha terra tão amada e abençoada, escolhida pelos meus pais ainda jovens, solteiros, na bagagem vastos sonhos… ideais… Minha mãe, recém formada, professora, vinda de Itabira, sua terra-natal e pai, da cidade de Sabará-Siderúrgica-, onde já trabalhava na Belgo-Mineira. Quanto amor, quanta dedicação pela benfazeja Companhia que os acolheu e pela nova terra. O tempo passou e foi há muito tempo. O passado tem muito que dizer. Hoje, vivendo outra vez as solenidades da Semana Santa, entrei no fantástico Túnel do Tempo que tanto amo.

Era Sexta-Feira Santa, 1957. Mais uma noite de procissão pelas ruas lindas e limpas do Pedacinho do Céu, ia acontecer. A noite já alta e plena cobria com seu manto de estrelas e de luar. A cidade assistia comovida o descendimento da Cruz, ouvindo atenta o Rvmo, Padre Antônio Henriques em sua homilia. A florida e verdejante Praça da mais bela Matriz de São José Operário era um mar de gente bonita, fervorosa, que logo saiu em procissão do Enterro pelas históricas ruas: Tieté, Tocantins, Tapajós, Beira-Rio, Cassino e Siderúrgica, cujas janelas das casas e dos hotéis Siderúrgica e Monlevade eram cobertas com lindíssimas toalhas brancas. O majestoso Cassino resplandecia, refletindo o seu brilho, seu esplendor por todo o Morro do Geo. Os jardins encantavam… A multidão caminhava em fila pelas tradicionais ruas, sem pressa e sem ruído, concentrada em pensamento profundo, sob o vaivém e olhar penetrante do nosso querido Pároco Padre Higino, que ia no meio da procissão para tudo controlar e era homem de um lado e mulher do outro; invenção do Padre Higino. Juntos era proibido. Em compensação o flerte incontrolável fazia nossos olhos alegres e apaixonados. E a procissão caminhava; vela acesa na mão, vez em quando chamuscávamos os cabelos de alguma chata e ríamos despistadamente e um pedido de desculpa esfarrapada se alguma percebesse e reclamasse. Sempre procurávamos ficar perto da Banda de Música que dava um show à parte, com suas músicas que também quando fúnebres, eram lindas. Mesmo porque procissão sem Banda de Música não tem graça. E os músicos tocavam divinamente. E o Antônio “Monalisa”? Cognome dado por nós, logo que na nossa terra chegou para trabalhar na Belgo-Mineira. Moço bonito, elegante, educado, charmoso, fazia sucesso com sua beleza e seu piston. Os Padres convidados, vindos de outras cidades, com suas batinas pretas de colarinhos brancos, chiques. E havia tanto padre tal qual um desfile do clero. O Rvmo, Padre Leví de Vasconcelos Barros sempre presente em nossas solenidades. Quem não se lembra? E a gigantesca procissão prosseguia… A Banda tocava… Os sinos badalavam… As beatas rezavam…

Varrida num instante toda a nossa educação católica e tradicional, caímos num estado de aprontar naquela Procissão de Enterro. E na Sexta-Feira Santa, de 1957 dos Anos Dourados, resolvemos fazer uma brincadeira arrasante.

Então, mais uma vez os arroubos da mocidade deram lugar para mais uma “santa” pintação de estudante. Aconteceu assim.

Era tradição os sinos da mais bela Matriz tocarem em todos os acontecimentos do Pedacinho do Céu. Aos domingos, chamavam os fiéis para a Santa Missa num repique festivo. Diariamente, às 18 horas, hora do Ângelus, soavam divinos. Nos enterros, emocionavam! No dia de São José, festa do Padroeiro, a alvorada era com o repicar dos sinos; ao anoitecer, missa, procissão festiva e Quermesse na Praça. Durante toda a Semana Santa e na Sexta-Feira Santa a poesia sonora dos sinos emocionava toda a cidade. No sábado de Aleluia, no Domingo de Páscoa soavam alegremente. Quantas saudades! O Tião “vagalume”, operário da Belgo-Mineira, morador das Três Casas era um dos tocadores dos sinos da São José. Recebeu o apelido porque sempre andava com uma lanterna na mão. E a gente bulia com ele: Ô seu “vagalume”, está procurando o quê? Já badalou o sino hoje? E ele bufava, batia o pé, nos mandava para aquele lugar! E a turma ria e corria feliz da vida!


Continuando a história daquela engraçada noite, que ficou na lembrança, saímos sorrateiramente da procissão, passando pelo morro que havia ao lado da escadaria, rumo a Matriz, onde hoje está edificado um predinho feinho da Congregação Mariana, o qual desca-racterizou nossa História. Quantas vezes descíamos e subíamos ali evitando a escadaria. E os tombos? Quem não se lembra? E nos dias de procissão? Ali era nosso atalho. Sem o predinho feinho no caminho a paisagem era bonita. Então, apressados, eufóricos, chegamos na Praça.

O bonitão Vicente Guimarães, meu primeiro amor, foi o escolhido para colocar a brincadeira em funcionamento. Subiu até o Campanário, a torre dos sinos, e lá estava o Tião “vagalume” que ao avistá-lo foi logo dizendo: pode descer… vai descendo ou o quê você quer aqui? Calmamente o Vicente disse-lhe: seu Tião, sem o “vagalume” é claro, Padre Higino mandou dizer para repicar o sino mais depressa, bem alto e alegre, na hora que a procissão chegar na Praça com o esquife do nosso Senhor morto. Os sinos têm que badalar sem nenhuma paradinha e num ritmo bem acelerado. Entendeu, seu Tião? Repicar bem rápido e alegre? O quê? Respondeu o Tião “vagalume”. Você tem certeza? Badalar com força? Padre Higino disse isso? Mas não era um repicar suave e triste? Mudou? Minha Nossa Senhora! Mas o Doutor Padre é quem sabe, resmungou o “vagalume”.

E a nossa brincadeira foi consumada. Escondidos na gruta de Nossa Senhora de Lourdes, não perdemos nada. Rimos de orelha a orelha. Foi um Deus nos acuda. Os sinos arrebentavam. Onde se viu coisa igual, meu Deus do céu? Alguns já comentavam. Na Praça um espanto geral. Uma explosão Santa tomou conta da bela, florida e verdejante gruta de Nossa Senhora de Lourdes. Os sinos soavam tão fortes e apressados que mais pareciam denunciar um vasto incêndio em todo o Vale do Piracicaba. Como já esperávamos, Padre Higino arregaçou a batina e desapareceu da Praça. Imaginem aonde foi ele…

Escandalizaram os ortodoxos do Pedacinho do Céu e as fofoqueiras de plantão até babavam!
E naquela Sexta-Feira Santa dos Anos Dourados, 1957, a poesia sonora dos sinos da Matriz cedeu lugar ao longo e estridente repicar frenético… Ensurdecedor… Vocês viram o Tião “vagalume”? É claro que não podemos vê-lo se passou como um sopro do vento.

Para isso fomos feitos: para lembrar e ser lembrados. Quando vier de novo o céu da Sexta-Feira Santa, largando estrelas, as saudades estarão lá na Praça da mais bela Matriz de São José Operário, do Padroeiro, que lá do alto entre montanhas, vela pela nossa cidade, pelo nosso velho rio e pela nossa matriarca Belgo-Mineira, no Centro Histórico, onde as belas e limpas ruas não eram só lugar de passagem, mas também de fraterna e sólida convivência.

*Coramar Alves é professora aposentada e colunista do jornal “Morro do Geo”!

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